Texto por Gonçalo Morgado
Entrevista por Francisco Barros
A mesmidade de uma sucessão demasiado longa de noites decalcadas a papel químico foi interrompida no momento em que me cruzei com o Sr. Saraiva. Entorpecido pelo já rotineiro consumo compulsivo de nicotina, digestivos e música anglo-saxónica, não se passava coisa alguma. Não me lembro se respirei fundo ou se suspirei. Confesso que às vezes tenho dificuldade em distinguir uma da outra… ao desviar o ouvido para lá da penumbra da média luz em redor lá estava ele!
Aqui no norte, a expressão “este gajo é um Senhor” sai-nos boca fora quando nos cruzamos com aquelas criaturas portadoras de um ou mais traços que as diferenciam das demais, tornando-as, às vezes de um modo inexplicável, alvo de admiração. São seres distintos, com uma classe à moda antiga, sóbria, nada anacrónica, reinventada, intemporal… compreendem o lugar que ocupam, valorizam com lucidez o peso de todos os desdobramentos do conceito de herança e põem-no em prática em cada gesto, em cada palavra, em cada interacção.
Aproximou-se, abordou-me confiante e conversámos durante uns bons quarenta minutos… ok, para ser completamente honesto, limitei-me a ouvir o que tinha para dizer e devo ter esboçado não mais do que dois ou três monossílabos. Falou-me de um passado recente onde havia princípios e se usavam camisas de flanela com padrões axadrezados, um tempo pautado por descobertas, saltos de fé, companheirismo e superação. Um tempo em que as palavras transcendiam toda e qualquer mordidela espalhafatosa e eram a proteína primordial de todas as refeições servidas em forma de disco. Um tempo em que o imediato não era sobrevalorizado e as barreiras eram quebradas e não contornadas…
Depois disto, diluiu-se na penumbra para lá da média luz onde o tinha fisgado e deixou-me ali, munido de uma memória vívida à qual regresso sempre que a mesmidade das noites me oprime, de ouvidos postos na escuridão, agarrado a uma ânsia sebastiânica por uma nova aparição. A sua ou a de um Senhor que se segue.
Irreversível / Francisco Barros – Olá, muito obrigado pela disponibilidade para esta entrevista e
parabéns pelo disco. Qual foi a motivação para a criação deste novo projecto?
David Pinheiro – Este projecto não teve propriamente uma motivação, mas foi muito influenciado pela pandemia. Nesta altura acabei por compor uma série de músicas que me ajudaram a ultrapassar esse período. Mostrei as músicas ao Ricardo e ao Bruno com quem já tinha trabalhado em Mr. Smith e o Ricardo sugeriu mostrarem-nas ao Tiago Pais Dias. Ele gostou, quis produzir o disco e hoje em dia é o baterista da banda.
Irreversível – Qual o conceito ou ideia por detrás da construção d´ “Os Senhores” e nomeadamente deste “Sr. Saraiva”?
David Pinheiro – O Sr. Saraiva foi criado porque sentimos a necessidade de ter uma personagem que contasse as histórias das músicas do disco. E a ideia será repetir esta fórmula nos próximos discos. E por isso pensámos, se vamos querer ter sempre um senhor em cada disco, fazia sentido que o projecto se chamasse Os Senhores. E assim ficou.
Irreversível – Existe toda uma imagem associada ao projecto, com as ilustrações feitas pelo Hugo
Makarov e com os vídeos animados por Tiago Albuquerque, numa aposta pouco habitual em Portugal, mas que merece todo o destaque. Só me recordo de algo parecido em Portugal feito pelos Teratron, no disco “As Cobaias“. A que se deve esta aposta e, pergunto ainda, se esta aposta está na génese do projecto e será indissociável d´ “Os Senhores” ou se foi algo que surgiu posteriormente?
David Pinheiro – Como quisemos ter um contador de histórias fez-nos sentido apostar na questão da animação e da ilustração porque sempre nos atraiu esse universo e porque acreditamos que tem um impacto maior e mais forte. Não diria que esteve na génese do projecto. Diria que foi uma consequência normal na direcção que o projecto rapidamente tomou.
Irreversível – Como foi o vosso processo criativo para a criação das composições?
David Pinheiro – Foi dividido em 3 fases. Numa fase inicial as músicas foram compostas por mim. E surgiam de todas as formas. No estúdio, na corrida matinal, no trabalho, durante os sonhos, etc, etc.
Depois foram trabalhadas em conjunto com o Bruno e o Ricardo e ganharam uma nova forma. Posteriormente com a ajuda do Tiago ganharam a forma final que está hoje presente no disco.
Irreversível – Esperam alguma evolução nas músicas quando as tocam ao vivo?
David Pinheiro – Sim, claro. Já tivemos o nosso primeiro concerto no Super Bock em Stock e já conseguimos perceber que as músicas ao vivo ganham uma dinâmica diferente, pois temos de fazer algumas adaptações uma vez que temos todo um universo de sons no disco. Optámos por fazer também algumas alterações em algumas estruturas para que ao vivo as músicas tenham ainda mais força.
Irreversível – Quais são as tuas/vossas fontes de inspiração?
David Pinheiro – Nós somos influenciados por todo o tipo de música que tenha qualidade e que seja bem feita.
Desde o Rock ao Jazz, Rhythm and blues e música mais alternativa, como o Grunge, por exemplo. Pessoalmente as minhas maiores fontes de inspiração são claramente os Radiohead. Mas sem esquecer Jeff Buckley, os Nirvana e claro, os The Beatles. A nível nacional cresci com a música do Rui Veloso pelo que vou sempre gostar bastante dele. E claro, os Ornatos Violeta. Tudo o que venha do Manel Cruz para mim é ouro!
Irreversível – Pessoalmente detesto rotular artistas ou bandas, é quase sempre limitativo, mas por vezes é necessário fazê- lo. Se tivesses de explicar o tipo de som que fazem, como o descreveriam?
David Pinheiro – É uma pergunta que já nos foi feita e gostamos de responder à mesma de uma outra forma: preferimos que seja o tempo a responder por nós. Preferimos que sejam as pessoas que nos ouvem a dizer isso daqui por uns anos. Porque a ideia é ficarmos cá por algum tempo!
Irreversível – O que é irreversível?
David Pinheiro – Costumo sempre dizer que irreversível é a morte. Mas no caso d’Os Senhores a palavra irreversível tem um significado engraçado, porque para nós, irreversível é quando lançamos algo para o mercado. “Já está cá fora. Agora não há como reverter!“
Actualização:
24 Março, 19h – Novo Ático Coliseu Porto
Bilheteira