10 000 Russos, não se resumem, não se explicam, não se encapsulam em palavras ou textos

Não sei como começaram. Nem se terminaram. Mas alguma coisa ficou, talvez um peso nas memórias. Tento escrever e as palavras não saem, escorrem por entre os dedos. Já ando nisto há tempo com este texto.

Há um silêncio que pesa mais do que o som. Um vazio carregado de algo que se recusa a partir.

Eles não estão. Ou talvez sempre estejam. A memória sabe. E, antes mesmo de lhe chamar saudade, antes de a nomear, escrevo que esse sentimento nunca vai embora. Há amores que deixam marcas que já nem sei se são minhas. Os 10 000 Russos foram como uma tatuagem sem tinta.

Não há gravação exata que capture o que foi. Não há documento limpo que explique cada concerto. O que existe é uma memória que insiste, contínua, errática, impossível de resumir. Há camadas que se acumulam e, às vezes, se desfazem. Talvez o que mais me fode é mesmo a impossibilidade de explicar o que acontecia quando eles subiam ao palco.

Durante concertos, o som parecia infiltrar-se no meu corpo e mente, mais que do que nos ouvidos. Era como uma droga. A sensação era sempre a mesma, que algo tinha ficado em mim. Não sei.

O tempo nesses concertos era outro. Não corria, inclinava-se. Não obedecia a nenhuma linha reta. Em cada segundo, em cada tema, havia uma espécie de elasticidade temporal e esse instante desdobrava-se em ciclos pela minha cabeça fora. Sem truques, sem necessidade de parecer mais do que eram. A presença deles vinha de outro sítio. A música fazia o resto.

Não era virtuosismo. Raramente era sobre virtuosismo. Era entrega, era densidade, era insistência. Eles propunham um som que não cabia só na música, era pensamento, era físico, era mental. Eram química pura.

A verdade é que havia uma força invulgar nos 10 000 Russos, uma convergência tão improvável quanto certeira. Cada um parecia existir num plano próprio, mas tudo encaixava com uma precisão que nunca era limpa, era uma precisão quebrada, fraturada, mas funcional. O choque era o propósito. O atrito era a estética. O desconforto era linguagem.

10 000 Russos, não se resumem, não se explicam, não se encapsulam em palavras ou textos. O que existiu ali não cabe no que posso escrever, mas tentei. Tentei porque ainda sinto. Ainda os ouço. E talvez isso seja o suficiente, não como prova, mas como resíduo, como a memória inapagável de estar deitado, debruçado, sobre um monitor de som durante um concerto na Malfeito, como se precisasse que aquela droga fosse consumida ininterruptamente.

Havia ainda aquela sensação estranha de estar a assistir a algo que não queria testemunhas. Música que parecia feita para si mesma, mas que tolerava o público. Como se estivéssemos ali por acidente, a ouvir um processo interno, químico, inevitável.

Eram mesmo droga. E a ressaca não passa. A mente lembra. A pele lembra. E enquanto esta ressaca durar, eles continuam. Em mim. Na memória torta.

Agora que já não os vejo, agora que os palcos ficaram sem aquela massa sonora que parecia remodelar-me a cada gig, resta-me só este esforço falhado de escrever este texto que tenta perseguir algo que nunca foi possível capturar. Porque o que vivi nos concertos era uma condição temporária. Uma alteração de estado.
Estou de ressaca.

Quando penso neles, não penso em discos, datas ou formações. Penso no estado em que ficava. Penso na tal alteração química, naquela suspensão de qualquer normalidade. E, no fundo, penso que algumas coisas terminam sem aviso porque já deixaram tudo o que tinham para deixar.
Que puta de ressaca.