Porque é quase sempre para consumo público, não para transformação interior.

Há um padrão que se repete, previsível como o ciclo solar. Alguém morre, de preferência alguém com nome reconhecível, com alguma carga mítica ou mediática e, de repente, somos inundados por uma torrente de homenagens, num imediatismo atroz. As redes sociais transformam-se em altares improvisados. Brotam palavras bonitas, citações fora de contexto, vídeos de arquivo, músicas melancólicas.
“Uma lenda.” “Inesquecível.” “Imortal.” “Um ícone que mudou o mundo.”

A morte, essa, traz sempre um filtro dourado. Passamos a gostar mais, a entender melhor, a ouvir com mais atenção, nem que seja por uns dias. E sim, há perdas que doem, que tocam fundo. Até hoje, na data do seu falecimento, costumo partilhar no Facebook uma foto ou uma música do Keith Flint. Em conjunto, publico linhas telefónicas de apoio ao suicídio e escrevo algo como: “(…) também eu estou aqui para te ouvir!” Cobain, Staley e Lanegan cabem nesse mesmo gesto. Já Mercury, Mark Sandman ou Bowie, são de outra fonte, sendo que todos me moldaram. Só que, a par da emoção, existe também um certo automatismo. Um impulso coletivo, quase instintivo, de reagir publicamente.
É quase sempre mais seguro aplaudir depois do fim. Menos arriscado.

Enquanto vivos, o que fazemos com as pessoas? Com o seu legado em tempo real, com o que ainda criam, produzem, originam ou desafiam?

Vivemos afogados num jornalismo de ocasião, onde a morte é manchete e a vida não tem tempo de antena. Os mesmos canais que ignoram décadas inteiras de criação voltam-se, em segundos, para os vídeos de homenagem. Os jornais que nunca escreveram uma linha sobre a obra de alguém, publicam, nos dias seguintes, suplementos especiais com capas emocionadas. Enquanto for preciso morrer para ser ouvido, há algo profundamente errado.

É a performance do luto em horário nobre. A morte como espetáculo mediático.

Os algoritmos agradecem. As audiências também. A cultura não. A cultura, constrói-se com presença, não com epitáfios.
Claro que há homenagens por paixão, por reconhecimento, por admiração e não por imediatismo, algoritmos, views ou audiências. A esses, o nosso silêncio cúmplice, porque entre o ruído também há ecos sinceros.

Mas também há quem veja na morte uma montra.

Existem, nesta nova realidade, os influencers, figuras com branding emocional que aproveitam o momento para colar o seu rosto a uma aura de sensibilidade ou cultura. Partilham homenagens sem saber distinguir uma discografia de uma t-shirt. Usam a morte e o luto como palco e sustento para a sua vaidade e autopromoção.

Que continuemos a lembrar os que partem, claro. Alguns até constantemente.
Porém, que o nosso reconhecimento aconteça enquanto ainda há som, carne, sangue, e não precise da tragédia para acontecer.


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