Para mim, sempre houve um vínculo afetivo entre os lugares e as músicas. Não consigo dissociá-lo, e, quando viajo, as memórias mais duradouras e intensas são aquelas em que a música esteve presente. A música está ad aeternum na minha mente.

Num sábado de abril, a primavera que mais parecia verão impeliu-me a descer no mapa português até à Beira Baixa. O calor abundante e a luz magnífica adensavam o meu entusiasmo. Não conduzo de modo apressado e gosto de ir sempre observando o que a paisagem oferece. Fui sempre entretido, bastando olhar à minha volta para descobrir algo a que entregar a imaginação. A música, obviamente, fez-me companhia…a música faz-me sempre companhia! A paisagem da Beira Baixa, ora apresentava-se larga e desprovida de árvores, ora exibia extensos campos de trigo em vastas planícies. Nesse cruzamento paisagístico encontrei algumas das mais formidáveis aldeias históricas de Portugal, sendo Monsanto, uma das mais invulgares.

Monsanto


Debruçada numa encosta escarpada, Monsanto parecia irromper entre gigantescas rochas graníticas. As casas dos monsantinos, apertadas pelos pedregulhos – uns poucos são usados para as divisórias das habitações – ajustavam-se pelas ruelas encolhidas e pedregosas. Os penedos, de enormes dimensões, pareciam protegidos apenas por simples fragmentos. Monsanto tem diversas atrações, nomeadamente: a Torre do Lucano – encimada com uma réplica de um Galo de Prata, prémio atribuído a Monsanto considerando-a “A Aldeia mais Portuguesa de Portugal”; a Fortaleza – edificada pela Ordem dos Templários, discreta mas com vista privilegiada no alto da colina; ou a tradicional Marafona – boneca de trapos, sem boca, nariz, ouvidos ou olhos, não podendo assim contar nada do que se passa entre o casal – que é colocada debaixo da cama para trazer felicidade aos noivos.

Monsanto


A História conta-nos que neste povoado milenar a mais de mais de setecentos metros de altitude, caminharam romanos, visigodos, árabes e os cavaleiros templários e, por conseguinte, são muitas as tradições seculares herdadas e preservadas por múltiplas gerações, destacando-se o Adaúfe, instrumento musical feito de pele de ovelha e tocado exclusivamente pelas mulheres de Monsanto. Todavia, o que guardo de Monsanto com maior apreço, é a audição de Jordi Savall e Arvo Part num excêntrico bar, singularmente situado em cima de um castiço penedo, onde tive frutuosa conversa com visitantes – o aumento do turismo possibilitou uma importante reabilitação dos edifícios, após décadas de declínio e de desertificação – de diferentes regiões do país. A música de ambos encaixa como uma luva em Monsanto. Cumplicidade é a palavra que encontro para descrever a relação entre as melodias de Jordi Savall e as colinas beirãs. Lembro-me bem dos cabelos em pé enquanto ouvia Folías de España ou Greensleeves. Detive-me duas horas na tasquinha, sentado num banco de pedra com o olhar siderado na deslumbrante vista para as aldeias cravadas nas planícies e serras em redor. As estradas, bem ao longe, apresentavam-se sinuosas e encantadoras. O sol descia abruptamente por entre as nuvens claras e foi nessa altura que se fez escutar o tema Uskudara que me lembrou que a música pode atravessar fronteiras, sejam elas israelitas ou persas, turcas ou gregas. Já assisti a um concerto do compositor e investigador de Música Antiga no FIMPV e foi suave e sereno como o rosto da felicidade. A música do presente para mim não é forçosamente uma evolução com respeito à música do passado… não estranho que a verdade esteja sempre associada a dúvidas e a incertezas.
O tempo passado no singular povoado a poucos quilómetros da fronteira espanhola, terminou com a canção de Arvo Part, “Spiegel im Spiegel“, sobre a qual só me atrevo a dizer: Obrigado.


Sexta edição d´ “As sonoridades das viagens“ na Irreversível.
Miguel Pinho é um reconhecido apaixonado por música e autor publicado sobre viagens.
Conhecendo estas premissas, a Irreversível lançou-lhe o desafio de somar as duas, a música e as suas viagens, numa rúbrica para Magazine.

Deixar um comentário

WP Radio
WP Radio
OFFLINE LIVE