Para mim, sempre houve um vínculo afetivo entre os lugares e as músicas. Não consigo dissociá-lo, e, quando viajo, as memórias mais duradouras e intensas são aquelas em que a música esteve presente. A música está ad aeternum na minha mente.

A luz de um imenso céu azul incide sobre as Fontainhas. É um tradicional bairro da cidade do Porto. Debruçado numa encosta do rio Douro, este pitoresco lugar da Invicta acorda cedo, muito cedo, a fim de receber umas das feiras mais antigas da cidade e, às duas da tarde de um sábado, ainda se podem ver alguns feirantes – de rosto cansado, mas tranquilo – ultimando os arrumos.
É um bairro especial, de costumes bem vivos e de enorme simbolismo para o Porto. Aquando das festas de São João – o principal evento que ocorre anualmente na cidade Invicta – as Fontainhas tornam-se um verdadeiro festim e nas suas ruas e pracetas servem-se quantidades intermináveis de sardinhas assadas e de vinho tinto.
Lá em baixo, os barcos iniciam vagarosamente a subida do Douro. Se os passageiros me conseguissem ouvir – a encosta é grande e íngreme – dir-lhes-ia que a viagem até ao Pinhão, no coração do Alto Douro Vinhateiro, é brilhante.

Nas Fontainhas, as ruas são estreitas e sinuosas. As varandas das casas ao pé da Alameda têm vista de primeira para umas quantas pontes do Porto e para o Mosteiro da Serra do Pilar. A escarpa das Fontainhas, granítica e densa, é um dos locais do Porto onde sinto que a relação entre os portuenses e a sua cidade é mais intensa, bastando para tal ouvir as conversas na esplanada junto ao Passeio das Fontainhas.
O Miradouro das Fontainhas é apenas um entre muitos outros ilustres da Invicta. Todavia, é este o lugar que elejo para desfrutar de uma tarde soalheira, ainda que aos primeiros dias do ano. São inúmeros os bancos de pedra que se dispõem pelo mirante ao pé do qual me sento. Ao meu redor, uma dezena de turistas apanhando sol e uns poucos moradores – presumo – divertindo-se com uma bola de basquete.

Um casal a meu lado ouve Slowdive. A banda inglesa lançou em 2023 um extraordinário álbum chamado “everything is alive“. Debaixo de um céu claro, e sempre de olho na Ponte do Infante, sabe-me muito bem escutá-lo. Tenho especial carinho pelos temas “Shanty” e “Slab“, repletos de emotividade e cujos componentes eletrónicos são de se lhe tirar o chapéu.
Esta zona do Porto é claramente uma dos mais autênticas e genuínas, não tendo sido ainda absorvida pelo desenvolvimento turístico que em certa medida se concentra mais pela Baixa.

© Miguel Pinho
Ponte do Infante | Rio Douro © Miguel Pinho


Mas voltando à música suave, melódica e sedutora dos Slowdive. O já citado casal, apercebendo-se do meu entusiasmo, sobe um pouquinho o volume. É um som marcadamente britânico e eu recebo-o de “braços abertos” …A banda de Reading é como o vinho do Porto… com o avançar dos anos a qualidade aumenta. Também gosto muito do tema “Kisses“, se bem que a cada audição descubro coisas novas e não é preciso muita perspicácia para imaginar que daqui a umas semanas as minhas preferências poderão ser outras. É um álbum que surpreende constantemente.

Apresento-me ao casal vindo do norte de Inglaterra, mais propriamente de Newcastle – sotaque muito forte… chamam-lhe geordie – , e deixo-me estar na contemplação por uns bons três quartos de hora, tempo suficiente para meditar sobre este vínculo intenso entre a paisagem e a música. Os veteranos do shoegaze – os Slowdive – fazem-nos companhia o tempo inteiro.
Conversamos sobre a relação umbilical dos ingleses com a música – a minha curiosidade em descobrir o que pensa um britânico quando viaja para qualquer parte do mundo e ouve sonoridades oriundas da Velha Albion – a arquitetura do Porto e a veia poética dos seus habitantes.
Os ingleses têm um vínculo especial com a Invicta, explorando-a e vivenciando-a desde há séculos. Não indiferente a esta realidade, creio, será o facto de Portugal e a Inglaterra deterem a mais antiga aliança diplomática do mundo, o Tratado de Windsor.

A música, de modo subtil, influencia a nossa forma de viver e de experienciar as coisas…
Leitor, delicie-se, pois então, com a música dos Slowdive, uma obra carregada de euforia poética…


Décima terceira edição d´ “As sonoridades das viagens“ na Irreversível.
Miguel Pinho é um reconhecido apaixonado por música e autor publicado sobre viagens.
Conhecendo estas premissas, a Irreversível lançou-lhe o desafio de somar as duas, a música e as suas viagens, numa rubrica para Magazine.

Mais recente livro de Miguel Pinho (artigo Irreversível):
Das Pontes do Porto aos Doces Vinhedos Magiares“.

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