Para mim, sempre houve um vínculo afetivo entre os lugares e as músicas. Não consigo dissociá-lo, e, quando viajo, as memórias mais duradouras e intensas são aquelas em que a música esteve presente. A música está “ad aeternum” na minha mente.
A Espanha é um dos países mais fascinantes da Europa e, para o conhecer verdadeiramente, seria necessária uma vida inteira dada a sua enorme diversidade cultural.
Pese embora o forte legado mouro, a Andaluzia será a região que melhor representa a cultura e identidade espanholas.
As principais cidades andaluzes – Sevilha, Granada, Córdoba, Cádis e Málaga – são faladas um pouco
por todo o mundo, ora pela sua monumentalidade, ora pela sua cultura e, inevitavelmente, pelo flamenco. Sevilha foi a cidade escolhida para tentar perceber a paixão dos andaluzes pela arte icónica de origem mourisca e cigana.
A capital da Andaluzia dá-me as boas-vindas debaixo de um sol abrasador. É uma terra emocionante. Tendo em conta o pouco tempo na cidade, a primeira coisa a fazer é caminhar pelas suas ruas, tentando absorver um pouco da sua identidade e do seu caráter.
Em Sevilha a monumentalidade é um lugar-comum, desde logo, a faustosa Catedral onde está sepultado Cristóvão Colombo, a fabulosa Torre Giralda, opulenta torre com mais de cem metros de altura ou a Praça de Espanha, local inúmeras vezes escolhido por distintos cineastas.
O casco antíguo apresenta uma beleza fascinante e, se nas praças se sente o cheiro a jasmim e a laranja, nas calles recheadas de bodeguitas, o mote é a diversão e o burburinho tradicional de uma cidade espanhola.
Ao final da tarde, eis-me assim numa taberna, em pleno bairro do Arenal, um dos mais populares de Sevilha. Fica num larguinho aprazível, onde estreitas e belas ruelas pedonais se encontram.
As paredes do interior do edifício, deliciosamente descascadas, conferem-lhe um certo carisma. A decoração é simples, mas a ambiência é acolhedora e de certo modo familiar. A atmosfera que se faz sentir, num espaço completamente cheio, é festiva. Saboreio umas tapas com uns amigos.
De repente, a voz rouca do proprietário faz-se ouvir, pedindo que se faça silêncio enquanto retira umas grades de cerveja e outras coisas mais que se encontram a um canto da taberna, improvisando um palco. Para minha surpresa, sobem para o recinto duas mulheres lindíssimas, de saias vermelhas com folhos, fazendo-se acompanhar por um guitarrista e por um homem de calça preta apertada e camisa branca. Os clientes ajeitam-se por um espaço que se torna cada vez mais pequeno…instantes depois e o silêncio é arrepiante. Aos doces movimentos das saias rodopiantes das donzelas, junta-se o sapateado emotivo do cavalheiro…ninguém se atreve a interromper o espetáculo, nem tão pouco a filmar ou a fotografar e, por vezes, soltam-se do público uns efusivos olés…as senhoras dançam de forma dramática e apaixonada, enquanto o homem canta de forma determinada e sentida…a guitarra, pois bem, a guitarra dá o toque de poesia e romance. O êxtase é total, quando, vindos da plateia, uns quantos entusiastas se juntam aos artistas…acrescentando ainda mais “sangue” e alma ao espetáculo.
Que privilégio assistir a um show tão formidável.
No final, e com os turistas ainda espantados com o espetáculo que presenciaram, o proprietário repõe em dois minutos os produtos de mercearia novamente no sítio certo e, os artistas, voltam a misturar-se por entre os clientes…
Troquei umas impressões com uns turistas que me disseram que é comum assistir-se a estas
performances de flamenco amador em certos espaços da cidade…e que, também por isso, voltam
regularmente a Sevilha…
Quarta edição d´ “As sonoridades das viagens“ na Irreversível.
Miguel Pinho é um reconhecido apaixonado por música e autor publicado sobre viagens.
Conhecendo estas premissas, a Irreversível lançou-lhe o desafio de somar as duas, a música e as suas viagens, numa rúbrica para Magazine.