Para mim, sempre houve um vínculo afetivo entre os lugares e as músicas. Não consigo dissociá-lo, e, quando viajo, as memórias mais duradouras e intensas são aquelas em que a música esteve presente. A música está ad aeternum na minha mente.
O jardim de uma das novas estrelas do horizonte londrino, o ultramoderno “The Walkie-Talkie”- edifício assim conhecido pela sua forma peculiar – permite uma vista de 360 graus sobre a capital inglesa. E que vista extraordinária, meus amigos! Londres é uma cidade incrível!!
Após umas duas horas no Sky Garden, caminhei um pouco pela “City” e pelas suas ruas pejadas de arranha-céus que combinam harmoniosamente com edifícios históricos. Poucas centenas de metros adiante e, esta zona de Londres, também conhecida por “Square Mile” – o centro histórico e financeiro da cidade – abria-me de novo as portas da magnificência, nos setecentos anos de vida do Mercado de Leadenhall. Logo à entrada, o mercado entusiasma pela sua estrutura com vigas de ferro forjado e arcos de construção vitoriana. O sol, incidindo levemente sobre as pequenas ruas de paralelepípedos, tornava a atmosfera encantadora, mágica.
O Leadenhall Market está repleto de restaurantes e bares lindíssimos. As boutiques e as mercearias contêm prateleiras carregadas de vistosos produtos. Olhava em redor… via os executivos da “The City” bebericando um copo na sua pausa laboral – não lhes digam que eu vi! – via o irreverente engraxador de sapatos literalmente sem mãos a medir e, havia ainda, os turistas, tal como eu, de sorriso rasgado. Londres é uma das capitais do mundo e transpira cosmopolitismo e diversidade cultural.
Treze horas. A música está sempre presente na minha mente e para levar ao êxtase este rol de emoções, precisava de música, ou não estivesse na Inglaterra. Junto à Waterstones e abaixo do Lamb Tavern, despertou-me a atenção um bar com uma entrada very british, de nome Old Tom’s Bar. As placas de madeira trabalhada que ladeavam a porta, aludiam aos queijos e aos whiskies. E em cada uma delas destacava-se a imagem de um ganso… o que, devo dizer, despertou ainda mais a minha curiosidade.
Desci as escadas e as minhas pernas rapidamente foram invadidas por arrepios. No bar, bastante acolhedor, fazia-se ouvir “The Beatles and The Stones”, dos The House of Love. A segunda música que ouvi foi o elegantíssimo tema dos The Felt, “Primitive Painters” que ressalva a voz sublime de Elizabeth Fraser e, nessa altura, percebi que iria passar momentos inolvidáveis no Old Tom’s Bar.
O bar… ora bem, no bar tudo estava bem cuidado e conservado. O mobiliário e os azulejos que adornavam o bar, empurravam-me para uma outra época. O barmen, atencioso e educado, expunha os produtos de modo coloquial e assertivo: queijos e charcutaria britânica de excelência, vinhos tentadores – desde os franceses aos sul-africanos – cervejas artesanais e whiskies escoceses, irlandeses e japoneses. Chamou-me particular atenção a separação regional dos whiskies escoceses… pareceu-me ter sido feita apenas com intuito pedagógico.
Para acompanhar os néctares, havia o pastel de cordeiro, o ovo escocês e o rolo de salsicha. Os queijos, duros e macios, poderiam ser servidos com geleia, cornichons ou cebolas em conserva.
Mas, afinal, quem era o Velho Tom, que empresta o nome a este icónico pub? O velho tom foi um ganso que durante várias décadas foi figura de proa no Mercado de Leadenhall. Nascido no ano de 1798, num imenso grupo de aves com o intuito de ser engordado para depois ser vendido no mercado, Tom chegou à capital britânica depois de seguir uma fêmea do seu rebanho que lhe terá agradado. Quando chegou a “hora” de Tom, este deu muita luta aos trabalhadores de Leadenhall, recusando-se a ser abatido. O nosso amigo granjeou assim a simpatia das pessoas que trabalhavam no mercado, fixando aí residência e alimentando-se de petiscos vindos dos frequentadores dos pubs e das tabernas. Tom torna-se muito conhecido e respeitado por todos. A sua morte acontece a 19 de março de 1835, aos 37 anos, nove meses e seis dias. O seu obituário veio, inclusivamente, uns dias mais tarde no famoso jornal The Times, no qual se poderia ler: “Morreu o chefe dos gansos, o orgulho do avicultor”.
Old Tom é mencionado numa placa à entrada do mercado de Leadenhall, porém, a homenagem mais sentida, é inquestionavelmente a do Old Tom’s Pub. Tom está enterrado no local onde hoje fica o bar, mesmo por detrás de um belo sofá castanho encostado aos azulejos verdes que embelezam as paredes. Não me recordo de todas as músicas como desejava – não podia perder pitada da história contada pelo gentil funcionário – mas lembro-me bem da deambulação musical pelo pop-rock, post-punk e indie-rock. A cereja no topo do bolo foi o clássico dos The Stone Roses, “I am the Ressurection” que, convenhamos, parecia ser um sinal do Velho Tom.
Décima primeira edição d´ “As sonoridades das viagens“ na Irreversível.
Miguel Pinho é um reconhecido apaixonado por música e autor publicado sobre viagens.
Conhecendo estas premissas, a Irreversível lançou-lhe o desafio de somar as duas, a música e as suas viagens, numa rubrica para Magazine.
foto de capa © Miguel Pinho