Para mim, sempre houve um vínculo afetivo entre os lugares e as músicas. Não consigo dissociá-lo, e, quando viajo, as memórias mais duradouras e intensas são aquelas em que a música esteve presente. A música está ad aeternum na minha mente.

Decorridos dois anos desde que visitei a nação insular de Malta, o espírito mediterrânico que a mesma contempla tem permanecido no meu pensamento desde então. Cobiçada incessantemente pela sua dimensão estratégica, absorveu de modo admirável as diferentes culturas que foi recebendo ao longo dos tempos.
A capital, Valletta, foi fundada por Jean de Valette que pertencia à Ordem dos Cavaleiros Hospitalários que governou o país durante duzentos e cinquenta anos. Tendo-se tornado independente do Reino Unido em 1964 – os britânicos libertaram Malta da alçada de Napoleão Bonaparte que ocupou a ilha de 1798 a 1800 – o arquipélago herdou diversos timbres britânicos, tais como o trânsito pela esquerda, as típicas cabines telefónicas vermelhas, o culto pelos pubs e pela música e o uso generalizado da língua inglesa, falada por quase toda a população.

Ruas de Valletta
Ruas de Valletta

É uma cidade invulgar e pela qual nutro um carinho especial. Lembro-me bem do rodopio constante pelas ruas que sobem e descem a toda a hora, protegidas por um intenso mar azul. Também da música vinda das varandas mais bonitas do mundo que embelezam os edifícios de pedra ocre . Valletta é uma cidade extraordinária para o passeio, assemelhando-se a uma pequena metrópole de cariz barroco, apinhada de monumentos reconhecidos pela Unesco, de palácios extravagantes e de casas centenárias cheias de pinturas e esculturas nas paredes. Devo dizer que quase todas as ruas de Valletta são charmosas… mesmo aquelas cujos edifícios estão velhos! É muito agradável calcorrearmos os passeios e as icónicas escadarias ouvindo uma mescla de idiomas. O maltês tem uma sonoridade
bastante peculiar e diferente de todas as línguas que conheço em território europeu… uma mistura de árabe e italiano com pitadas de inglês. Aliás, em Valletta deambulamos continuamente pelas culturas italiana, britânica e magrebina. Agradavelmente, cada rua que atravessava me dava música, especialmente World Music e Jazz. Fui dar uma espreitadela à Co-Catedral de São João – em maltês Kon Katidral ta` San Gwann – e pelo caminho fui passando por inúmeros edifícios institucionais, jardins públicos e praças relaxantes. O exterior da Igreja – sede dos “Cruzados de Malta” – austero e simples, contrasta com o interior em talha dourada, mármores raros e lápis lazúli. O altar acolhe a famosíssima pintura de Caravaggio, “Decapitação de São João Batista”. O mestre italiano terá residido na capital maltesa, após escapar à justiça por alegado homicídio em Roma. Cinco minutos de caminhada e estava no Upper Barraka Gardens, que é um parque com belas arcadas e românticos bancos de jardim, e do qual se tem uma vista absolutamente esplendorosa para o porto natural de Valletta e para as Três Cidades: Senglea, Vittoriosa e Cospicua. Enquanto passeava junto a St. Barbara Bastion ouvi o brilhante Early Summer de Ryo Fukui e logo de seguida a doce All night Rendez Vous de Toshiyuki Honda.

Co-Catedral de São João
Co-Catedral de São João


A música vinha das já referidas varandas. Uma dezena de pessoas organizava uma festa…via-as conversando e bebendo, enquanto apreciavam ao longe a península das Três Cidades. Talvez surpreendidos com o nosso reconhecimento musical convidaram-nos para a festa. Senti uma extraordinária delicadeza e sensibilidade artística nos malteses e também nos turistas que estavam na festa que pretendia homenagear o Jazz nipónico. Walter Scott, famoso escritor escocês, dizia sobre Valletta: “Cidade construída por cavalheiros para cavalheiros”. O país do sol nascente soube fazer o seu próprio Jazz e gerar músicos geniais como Sadao Watanabe ou Ryo Fukui. Após a festa nas varandas mais bonitas do mundo, parámos num típico bar maltês. A localização privilegiada, os singulares bancos de madeira dispostos pela escadaria e a música vinda do interior despertaram o nosso interesse. A noite era dedicada à World Music e ao Jazz. Bebemos uma garrafa de vinho maltês com uns deliciosos pastizzi folhados de requeijão e ervilhas – sob uma temperatura que rondava os vinte graus. Malta, bem no sul da Europa, a meio caminho entre a Líbia e a Sicília, tem sol durante praticamente todo o ano. O bom tempo, o vinho e a música suave de solos serpenteados de Hidehiko Matsumoto foram a nossa companhia.

Varandas de Valletta
Varandas de Valletta

Sétima edição d´ “As sonoridades das viagens“ na Irreversível.
Miguel Pinho é um reconhecido apaixonado por música e autor publicado sobre viagens.
Conhecendo estas premissas, a Irreversível lançou-lhe o desafio de somar as duas, a música e as suas viagens, numa rúbrica para Magazine.

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