Para mim, sempre houve um vínculo afetivo entre os lugares e as músicas. Não consigo dissociá-lo, e, quando viajo, as memórias mais duradouras e intensas são aquelas em que a música esteve presente. A música está ad aeternum na minha mente.
A cidade de Istambul, que primeiro se chamou Bizâncio e depois Constantinopla, é uma urbe verdadeiramente estonteante e a única em todo o mundo que se situa em dois continentes. Os seus dezasseis milhões de habitantes vivem rodeados de belos monumentos e museus, de hotéis e
restaurantes carismáticos, de ruas e de praças cheias de adrenalina e exotismo marcadas por uma simbiose única de traços europeus e aromas orientais. Istambul, construída sobre sete colinas em redor do Corno de Ouro, apresenta- se com o horizonte repleto de cúpulas e minaretes dourados, mas também de inúmeras igrejas e umas quantas sinagogas – a Turquia, embora predominantemente muçulmana, é uma nação laica.
Dos muitos povos que tenho conhecido, o turco foi sem dúvida um dos que mais me marcou. É simples, gentil e com forte interesse pela dança e pela música. A sensibilidade musical dos turcos é inquestionável, estando a música presente nos mais variados sítios. Seja nos táxis que se estendem pelo trânsito
caótico, seja no chamamento dos Muezzin para a oração, em que os cânticos vindos da Catedral de Hagia Sophia alternam com os da Mesquita Azul, ou ainda no Grande Bazar – mercado gigante, carregado de simbolismo e excentricidade – onde pude assistir a uma orquestra de violinos, harpas, flautas, guitarras e cítaras com um repertório surpreendente de peças turcas, gregas e arménias, abrindo a música a outras sonoridades, fomentando o respeito e o diálogo entre diferentes culturas. É condição fundamental viajarmos de mente aberta pelo imenso mercado coberto onde se vende tudo, mas mesmo tudo o que se possa imaginar. Enquanto passeava junto a uma loja de instrumentos tradicionais, numa das sessenta e cinco ruas do Grande Bazar, foi-me oferecido um chá delicioso por um senhor de farto bigode que, num inglês perfeito, disse-me que a dita bebida iria fazer de mim um pequeno tenor. Pouco depois tentei cantar algo mas, sejamos sinceros, a missão que era pedida ao chá afigurava-se hercúlea!!
Mais tarde, atravessei a icónica Ponte Gálata que liga Sultanahmet ao distrito de Beyoglu, onde fica o bairro de Pera, com inúmeros bares, restaurantes e espaços culturais, tendo num deles presenciado a dança rodopiante dos dervixes, num espetáculo verdadeiramente singular.
Passei ainda pelo incontornável Pera Palace Hotel – o exterior apresenta uma elegante fachada neoclássica – por onde andaram Agatha Christie, Alfred Hitchcock ou Ernst Hemingway… constou-me que pelas redondezas andava Marianne Faithfull.
Foi no tranquilo e acolhedor bairro de Çihangir, bem encostado às águas do Bósforo, que senti na plenitude o respeito pela diversidade social e religiosa existente entre os habitantes de Istambul. Estava eu sentado num banquinho, na calçada de um simpático café – de intensa miscelânea cultural em que
umas mulheres cobriam a cabeça, enquanto outras apresentavam as últimas tendências da moda milanesa ou parisiense – e ouço o som fascinante da chamada para a oração vindo dos altifalantes repousados nos minaretes das mesquitas. Reparei que alguns clientes imediatamente se prepararam para
orar, enquanto outros continuaram normalmente com o que estavam a fazer. Todavia, o respeito era absoluto. Mais tarde, já no hotel, aconteceu o momento que eternizou Istambul na minha mente.
Na varanda do meu quarto, pela noite dentro, observava os navios e os barcos percorrendo o Bósforo e eis que no prédio ao lado ouço levemente o tema “Ship Song” de Nick Cave. A frase inicial “Come sail your ships around me”, por entre um piano denso e melódico, entranhou-me no corpo. “Ship Song”
fala-nos da complexidade do amor e que o mesmo vale sempre o risco. De seguida, nova canção do músico australiano. “Love Letter” termina com “Oh baby please come back to me”…como se Istambul adivinhasse a minha partida!!! Nick Cave, cujos temas das suas composições retratam a vida, a morte e a religião, aborda também o amor de forma desconcertante e emotiva e o meu vínculo a Istambul ficará intimamente ligado à sua audição.
Oitava edição d´ “As sonoridades das viagens“ na Irreversível.
Miguel Pinho é um reconhecido apaixonado por música e autor publicado sobre viagens.
Conhecendo estas premissas, a Irreversível lançou-lhe o desafio de somar as duas, a música e as suas viagens, numa rúbrica para Magazine.
foto de capa © Miguel Pinho