Para mim, sempre houve um vínculo afetivo entre os lugares e as músicas. Não consigo dissociá-lo, e, quando viajo, as memórias mais duradouras e intensas são aquelas em que a música esteve presente. A música está “ad aeternum” na minha mente.
Tirei os fones e consegui identificar as sonoridades que se faziam ouvir, mas continuava de volta da “Spinning Away“.
Caótica, espiritual e enigmática, Atenas teve o seu período áureo há mais de dois mil e quinhentos anos. Após décadas de estagnação, a cidade tem vindo a regenerar-se de modo notável nos últimos anos, recuperando parte da prosperidade e influência cultural de outrora. Prova disso são os inúmeros espaços culturais, modernos cafés e bares de música que se espalham pelas suas praças e avenidas. Mas, aquilo que continua a despertar maior interesse em todos aqueles que a visitam, é o legado absolutamente inigualável da antiga Grécia. Berço da civilização ocidental, a capital grega é um autêntico museu ao ar livre. Num típico dia de verão ateniense, a luz clara e perfurante parece retirar toda a monumentalidade do edificado, deixando-nos a certa altura algo confusos, não sabendo se é realidade ou se é um sonho.
Gosto de associar uma música a todas as paisagens que observo. Desta vez, e por ter visto a divulgação feita ao concerto de Brian Eno no lendário Odeão Herodes Ático, não me saía da memória a faixa “Spinning Away” do álbum “Wrong Way Up“. Brian Eno e John Cale, velhos conhecidos, juntaram-se para criar um belo álbum pop com dez músicas carregadas de brilhantismo, resultando assim na perfeição a cooperação entre duas lendas do art-rock britânico, o primeiro mais familiarizado com sonoridades atmosféricas, enquanto o segundo, fundador dos The Velvet Underground, numa miríade de estilos durante seis criativas décadas. “Spinning Away” é uma melodia grandiosa e exuberante que nos faz viajar mentalmente…
Decidi fazer um roteiro circular pelos locais mais emblemáticos de Atenas. Iniciei a caminhada junto à Acrópole com a ajuda de uns bons auscultadores. A primeira impressão foi de alguma desconexão: ruínas cheias de história encontravam-se literalmente pegadas a blocos de escritórios ou de apartamentos e as buzinas dos carros e das motas sobrepunham-se às conversas que irradiavam das multidões.
A “Spinning Away“, todavia, mantinha-se na minha mente e já tinha interiorizado que seria a minha companhia no périplo pelos caminhos de Sócrates e Platão.
A Acrópole ou Cidade Alta situa-se numa formação calcária com cerca de cento e cinquenta metros de altura e dela fazem parte, por exemplo, o Partenon, magnífico templo construído no século V a.c., o Erecteion, templo consagrado a Atena com as suas emblemáticas figuras femininas esculpidas e o Teatro de Dionísio, berço do Teatro Ocidental. É um dos mais importantes conjuntos de monumentos em todo o mundo. O Odeão, grandioso anfiteatro de pedra que fica na encosta sul da Acrópole, acolhe espetáculos que vão desde as óperas de Puccini e Verdi, à eletrónica mais contemplativa de Max Cooper. Sempre escutando a “Spinning Away“, passei junto ao Templo de Zeus – onde dizem que Sócrates se costumava reunir com os seus seguidores – e ao mítico Estádio Panatenaico, local que acolheu os primeiros Jogos Olímpicos. O Monte Licabeto, a meio do percurso, permite uma das melhores vistas para a cidade. Atenas é uma urbe enorme, ruidosa e algo anárquica, mas prefiro relevar a sua riqueza cultural e social. Que regalo sentir o odor perfumado das buganvílias e jasmins contemplando a terra dos filósofos. A letra de “Spinning Away“, para alguns poderá ser algo ambígua, mas para mim representa a esperança:
“Up on a Hill, as the day dissolves,
With my pencil turning moments into line,
High above in the violet sky”.
É o vocal mais sublime de Eno… a guitarra rítmica de Robert Ahway e o violino esplendoroso de Neil Catchpole levam-me a um hedonismo sem fronteiras…
Continuei caminhando por Atenas… avistei cafés cheios de vida, palácios neoclássicos, lojas de cerâmica e de antiguidades. A praça Syntagma é uma das principais da cidade e nela se situa o icónico edifício do Parlamento Helénico. Repleta de turistas, é um local amplo, airoso e impactante. Psyri, tradicional bairro ateniense, recebeu-me nas suas ruas empedradas pelas quais se estendem pitorescas tabernas… os clientes, procurando frescura, sentavam-se por debaixo das ramadas e pérgolas enquanto bebiam o clássico Ouzo.
Tirei os fones e consegui identificar as sonoridades que se faziam ouvir, mas continuava de volta da “Spinning Away“. Brian Eno é um dos maiores nomes da música contemporânea, inspirando inúmeros artistas, do punk ao techno, passando pelo rock progressivo ou pela ambient music, da qual foi fundador certos estudiosos referem que Eno acertou todas as agulhas depois de Tom Philipps lhe ter imposto a audição de Christian Wolf e John Cage. Após quatro horas de caminhada estava de volta ao bairro de Plaka, agora na Anafiotika. É uma das zonas mais encantadores da cidade, repleta de ruelas íngremes, pitorescas e muito antigas, cujas pequenas casinhas brancas que se entrelaçam pelas floreiras evocam-me a arquitetura das belas ilhas Cíclades. Já se fazia noite e a “Spinning Away” continuava a marcar o ritmo:
” One by one, all the stars appear,
As the great winds of the planet spiral in Spinning Away,
Like the night sky in Arles…”.
Hipnótico.
Eno quando chama o céu da Provença, bem poderia falar do céu de Atenas que inspirou a filosofia, a democracia e toda a cultura ocidental…a determinada altura sentia inveja dos atenienses por poderem desfrutar de tal céu azul.
Ajudado pela “Spinning Away“, pude assim contemplar toda a beleza de uma cidade importantíssima para a história da humanidade… mas que bela canção de viagem.
Editorial:
Quinta edição d´ “As sonoridades das viagens“ na Irreversível.
Miguel Pinho é um reconhecido apaixonado por música e autor publicado sobre viagens.
Conhecendo estas premissas, a Irreversível lançou-lhe o desafio de somar as duas, a música e as suas viagens, numa rúbrica para Magazine.