Para mim, sempre houve um vínculo afetivo entre os lugares e as músicas. Não consigo dissociá-lo, e, quando viajo, as memórias mais duradouras e intensas são aquelas em que a música esteve presente. A música está ad aeternum na minha mente.
O ponto base para conhecer a elegante região da Nova Aquitânia foi a pequena localidade de Saint André-de-Cubzac. Fiquei alojado bem perto do Château de Bouilh, imponente obra neoclássica em forma de meia-lua. Instalada na margem direita do rio Dordogne, a cidadezinha situada ao pé de Bordéus viu nascer Jacques-Ives Cousteau, o lendário explorador de boné vermelho que apresentou a vida dos oceanos a milhões de lares.
Assim, antes da partida para Blaye exigia-se uma visita de cortesia à casa onde residiu uma personalidade que se tornou absolutamente incontornável na cultura ocidental do século XX. O edifício granítico fica mesmo na rua principal por cima de uma farmácia, à época gerida pelo seu avô. Autor de inúmeras obras literárias de relevo e vencedor de três óscares, o oceanógrafo francês foi também um acérrimo defensor das causas ambientais. Que bom teria sido se tivéssemos ouvido com mais atenção a sua denúncia da incúria humana, prevendo possíveis desastres ecológicos e alertando para a situação caótica dos oceanos.
As horas chamavam-me… bem como as cores e os cheiros do verão. Pus-me a caminho de Blaye, terra vínica, onde o encanto e a história parecem se encontrar. Andava com a banda Yo la Tengo deambulando na minha cabeça – acontece-me por vezes ficar um dia inteiro de volta de uma música – e assim, pu-la à escuta, deixando correr temas da minha preferência. As faixas “Our Way to Fall ” e “ Green Arrow” – canções suaves e atmosféricas que imediatamente associo ao verão – encheram-me as medidas e ajudaram sobremaneira à contemplação da paisagem. Considero a banda norte-americana um emblema do indie rock.
A estrada, belíssima, passa junto a propriedades cujos palácios têm uma posição privilegiada para os vinhedos verdejantes trabalhados até ao mais ínfimo detalhe. Estas célebres entidades vinícolas apresentam degustação de vinhos e mostram ao visitante as categóricas herdades que dela fazem parte. É uma rota de vinhos absolutamente inesquecível.
Passei junto a pequenos portos nostálgicos, a graciosos jardins floridos, a aldeias que pareciam caminhar ainda pela Idade Média – Bourg é um bom exemplo – e a vilas galo-romanas que testemunharam intensas batalhas ao longo dos tempos. Que bem ia caindo a música dos Yo La Tengo. Estava naturalmente um pouco ansioso por Blaye, imaginando que a pequena comuna pudesse ser o lugar ideal para os apaixonados por história e amantes de bons vinhos.
Debruçada sobre o maior estuário da Europa Ocidental, Blaye tem contornos magníficos. Possui uma cidadela Património da UNESCO projetada no século XVII pelo Marquês de Vauban com a finalidade de proteger Bordéus das invasões marítimas. Perdi-me nos labirintos das suas impressionantes fortificações cheias de casas de pedra e lojas de vinho.
Em Blaye não são muitos os cafés, mas os que existem têm elegância. A minha opção recaiu numa convidativa esplanada que me dava a escutar “Neon Lights” dos Kraftwerk. Tive curiosidade em ver quem poderia ser o responsável pela escolha da icónica banda de Dusseldorf.
O proprietário, que conhecia muito bem Lisboa, era um viajante do mundo, inexcedível no trato. Já no interior do café provei vinhos espetaculares e aprendi imenso sobre uma região vinícola ímpar – uma nota para a garrafeira que era sublime -, ficando a saber que os tintos da denominação Blaye Cotes de Bordeaux são fortemente marcados pela uva Merlot enquanto os brancos pela casta Sauvignon Blanc. Também que a casta Blaye – que origina vinhos de excelência – é produzida em vinho tinto e são apenas quinze o número de viticultores “autorizados”.
Enquanto fomos conversando, pude escutar o novíssimo álbum “Elements“, do duo dinamarquês KALEIIDO. A saxofonista Cecilia Strange e a guitarrista Anna Roemer, na sua simbiose de eletrónica, ambient e jazz, encheram a sala de faixas suaves e cintilantes. O saxofone eleva o tema “Sky Part I” a um patamar celestial. Os figos de Bourg e os bombons de Blaye, o vinho com sabor a frutos vermelhos e menta… e naturalmente a música, sempre a música.
Feliz dia!
Décima edição d´ “As sonoridades das viagens“ na Irreversível.
Miguel Pinho é um reconhecido apaixonado por música e autor publicado sobre viagens.
Conhecendo estas premissas, a Irreversível lançou-lhe o desafio de somar as duas, a música e as suas viagens, numa rúbrica para Magazine.
foto de capa © Miguel Pinho