O toque de cada uma das pessoas que idealiza esta aventura e a faz acontecer está presente em todos os apontamentos deliciosos espalhados por um recinto onde se flui vividamente e se leva um banho de amor sincero e despojado de merdices.
Minutos depois de cortar o cordão umbilical que todas as semanas me liga quarenta horas a uma espécie de VPN recebo um SMS com o texto “Cheguei”. O que aconteceu a seguir foi uma sucessão vertiginosa de pequenos eventos… uma viagem curta até à estação da Granja em resposta ao tal SMS, o prazer do reencontro com um amigo de outros e de todos os tempos, uma ida ao supermercado, cozinhar o jantar para quem ia ficar por casa, beber uma cerveja durante o processo, tomar banho a correr, garantir o bem-estar do lado canino da família, acabar de arrumar uma série de tralhas, voltar a entrar no carro e rumar até Santa Maria de Lamas. Tudo isto em pouco mais de duas horas. Quando cheguei à bilheteira do Basqueiral junto à Igreja tinha o coração a mil. Resolvidas as formalidades e já de pulseiras no punho, o meu GPS biológico soltou o muito aguardado “chegou ao seu destino”.
Transferir a espuma dos dias para um copo de fino pareceu-me a solução perfeita depois de tanta correria, perdido que estava o primeiro capítulo sonoro do dia. Pelo que soube, o concerto de Azia no Palco Capela foi um momento com impacto sonoro e visual e vai perdurar na memória e no ADN do Basqueiral. Espero conseguir apanhá-los num futuro próximo…

À medida que uma moldura humana de proporções consideráveis se começava a formar em frente ao Palco Museu saltou-me de imediato à memória o título da crónica Irreversível sobre o concerto de apresentação do disco de estreia dos Cobrafuma no Woodstock 69 uns dias antes: “Já é costume as más influências andarem juntas.”. Posso dizer-vos que foi incrivelmente refrescante ver essas tais más influências trocarem a refusão do fundo da sala de aula pela frente do palco, até porque em pouco mais de trinta segundos ficou claro que estavam ali para espalhar e provar do seu próprio veneno – “rock ‘n roll pós-pentatónico sem limite de velocidade” que ao vivo e com uma plateia a arder por todo o lado se transforma numa manifestação suada de sensualidade. Se alguém não acabou a pinar desenfreadamente depois deste concerto, o mundo é um lugar estranho.

E do nada, bateu a fomeca… ao contrário da grande maioria dos festivais de nomeada, o Basqueiral não oferece trinta mil opções para um gajo encher o bandulho, não impinge o whisky da moda, não fomenta fúrias do açúcar ensopadas em Nutella. A máquina que alimenta os bares e a praça da alimentação tem uma oferta pragmática, descomplicada e aprecia o sorriso honesto de um cliente satisfeito. Filas a perder de vista não há, tudo flui e à segunda deslocação ao bar é só pousar o copo e pedir “o costume”. Go with the flow mais go with the flow é impossivel.
Depois do café, a sobremesa foi servida em formato abraços, beijos, cumplicidades e o tempo voou até à abertura do palco Tendinha dos Clérigos.
(…) na primeira fila de um auditório completamente desvairado era possível ver a grande maioria dos membros da organização e dos músicos intervenientes no alinhamento do dia…
Ando há uns bons anos a coleccionar saudações de abertura de concertos de Mão Morta. “Boa noite, Ílhavo!”, a primeira de todas, “Boa noite, Coimbra!”, “Boa noite, Porto!”, “Boa noite, Lisboa!”, e agora “Boa noite, Lamas!”. Seja pela sua habilidade de reinvenção ou por outra razão qualquer, o que emana do palco soa-me sempre a novo e desafia o traço anacrónico do termo mitologia. São quase trinta anos a perder os três a cada “boa noite”, a ser levado ao limite, a virar a alma do avesso, a perceber a grandeza de uma banda que ao longo dos anos se mantém pragmática e extremamente pertinente, a mergulhar numa distopia sempre diferente da anterior, a crescer com a plena noção do que está a acontecer… puto de concerto de rock’n’roll. C`um caraças.

Nova romaria até ao Palco Museu com uma paragem estratégica num dos quiosques de cerveja do recinto (sim, a cerveja faz tão parte de um festival como as bandas que por lá tocam), não sem antes olhar em volta e sucumbir aos encantos do cenário incrível com que a organização do Basqueiral nos presenteia ano após ano. O toque de cada uma das pessoas que idealiza esta aventura e a faz acontecer está presente em todos os apontamentos deliciosos espalhados por um recinto onde se flui vividamente e se leva um banho de amor sincero e despojado de merdices.
Conseguir ver Baba Doherty e Nik Balchin a um metro de distância, que é como quem diz, literalmente em cima deles, foi uma experiência memorável. Outro dos grandes encantos deste festival… enquanto o diabo esfregou o nariz a plateia mandou-se ao ar e aconteceu a primeira epifania dançante da noite. Transpirou-se emergência e destilou-se urgência. Houve suor, sorrisos de orelha a orelha, abraços e trocas cúmplices de olhares. A proximidade permitiu perceber o seu modus operandi, a forma como se entregam e desbundam o que fazem sem por um segundo perderem o foco. Deram-se à coisa com generosidade, fizeram-no cara a cara e deixaram-se contagiar sem um pingo de resistência. Mandaram alto sainete.

À saída do concerto de Baba Ali deu-se um ajuntamento de malta e a conversa começou a fluir entre amigos novos e amigos de sempre… rock’n’roll para aqui, vida para ali e do nada estávamos com uma taça de cerejas à frente. A banda sonora desse momento foi o concerto dos indignu… ou seja, aconteceu quase todo ao longe. Espreitei as últimas três músicas e assisti ao final da apresentação. Soube a pouco… mas em contrapartida, as cerejas souberam-me pela vida!

A noite estava a chegar ao fim e ditou o alinhamento que ia toda a gente regressar a casa depois de enfardar uma carga de lenha de proporções inimagináveis. Os PETBRICK entraram à Júlio César – chegaram, viram e partiram o filho da puta do buraco de alto abaixo. E como se não bastasse ainda conseguiram escavacar o que sobrou! A determinada altura subi as escadas da entrada do Museu de Lamas e na primeira fila de um auditório completamente desvairado era possível ver a grande maioria dos membros da organização e dos músicos intervenientes no alinhamento do dia… não destoavam minimamente da moldura humana envolvente. A passagem de Igor Cavalera e Wayne Adams abriu mais um capítulo cru, duro e dançável na narrativa do Basqueiral, em Santa Maria de Lamas… e estava feito o primeiro dia!

*foto de capa Basqueiral © João Pádua
*fotos de capa Mão Morta e Baba Ali © André São Marcos
Conteúdo escrito pelo criador de conteúdos Gonçalo Morgado
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