Um copo de limonada minada por um drunfo que a cultura popular portuguesa ainda não tinha provado…

Ao segundo dia de Basqueiral, o adolescente cá de casa juntou-se aos graúdos e tal como eles trouxe um amigo também… almoço tardio com o primeiro dia de festival a servir de entrada, conversa solarenga à mesa da cozinha, uma garrafa de maduro branco a estalar para os mais corajosos e outra de Coca-Cola para os que estavam em negação sobre a quantidade de viagens ao bar a acontecer daí a umas horas. Arrumada a aurea mediocritas da higiene doméstica e pessoal, bazou-se para Lamas.

Chegámos ainda o sol ia alto. Entrámos de shades na tromba e parámos logo à entrada. Havia Mercado das Artes, percorrido de fio a pavio. E no pavio deu-se o primeiro ajuntamento de beijos, abraços e apertos de mão do dia, em frente a uma banca de encher o olho e colorir a orelha de uma irreverência distinta. Voltámos a perder o primeiro concerto do dia…

Basqueiral © João Pádua
Mercado das Artes – Basqueiral © João Pádua


Os atributos do recinto do Basqueiral ganham outra dimensão ao final da tarde. Muito por responsabilidade de uma mancha verde que se alastra num palpitar perceptível, alimentado pela canalha a correr de um lado para o outro com malta crescida de sorriso rasgado no seu encalço…

A determinada altura, o adolescente e o amigo começaram a perguntar freneticamente quando começava o concerto dos Unsafe Space Garden. Rumámos à frente direita do Palco Tendinha e foi uma questão de segundos até sermos postos em sobressalto com a gritaria que ecoava do backstage. A resposta estava ali, sob a forma de uma estranheza cheia de contradições semióticas sustentadas por uma esquizofrenia sonora de referências desalinhadas a tudo do bom e do melhor que a história do rock desatinado tem para oferecer. Foram cinquenta e alguns minutos de subversão, de inquietude, de dedo na ferida, de fintas musicais, de melodia, de irreverência, de lata, de coragem, de inteligência, de história do rock, de inconformismo, de sentido de humor, de arejo, de tau-tau… uma cena pintada a lápis de cor que ao ser ouvida com atenção, deixa a alma com um olho negro e cheia de escoriações. Um copo de limonada minada por um drunfo que a cultura popular portuguesa ainda não tinha provado… depois dos Unsafe Space Garden, o dia seguinte vai ser uma ressaca completamente nova e muito, mas mesmo muito refrescante!

© João Pádua
Unsafe Space Garden © André São Marcos


De coração aos tombos e sem deixar a poeira assentar, o percurso até ao Palco Museu foi em linha recta. Estava na hora de Sereias. O adolescente e o amigo desceram até à exposição e começaram a sua saga frenética de usufruto do festival em modo autónomo, modo esse também nos deu outra autonomia – a necessária para focar no “special moment in time” que estava prestes a acontecer. Aquele encontro de músicos talentosos, proficientes, intensos e sei lá mais o quê com uma voz cheia de vozes produziu um momento de beleza (simples e sem adjectivação excessiva). Se a banda que os antecedeu pôs o dedo na ferida, os Sereias dilaceraram-na com os dedos todos. As palavras da tal voz cheia de vozes soaram-me familiares. Ecoavam nos almoços de família de há muitos anos, em viagens de carro intermináveis, proferidas pela inquietude objectiva de alguém que por estes dias vai desaparecendo quieto e aos poucos, à medida que se debate com uma série de faltas, objectividade incluída. Com os dois pés bem fincados no paralelo em frente ao palco, senti-me instigado a questionar e voltei a lembrar-me do poder da palavra, especialmente quando bate dura e sem contemplações. Assumo a comoção, assumo a viagem no tempo e assumo a impotência a que assisto sempre que revejo o gajo que me fez e, ainda que às vezes de um modo estranho, me ensinou a pensar. Tive que sair para gritar por dentro e ir buscar uma cerveja. Regressei e quando terminou, senti-me pequenino perante um dos concertos mais avassaladores dos últimos vinte e cinco anos… FODA-SE!

Reencontro emocional com o adolescente e o amigo. Jantar.

Sereias © João Pádua
Sereias © João Pádua


Do hall de entrada até à sala principal, o percurso assume-se, mais intenso a cada ano, como uma descida ao inferno. A consciência que entra nunca é a mesma que sai porta fora…

Senhor, a teus pés eu confesso…” – António Calvário no Basqueiral seria uma cena à homem de barba rija, mas não é por aqui que quero ir. A introdução da letra de “Oração” serve sim para admitir que entrei no concerto de Três Tristes Tigres de pé atrás, por uma razão muito simples – o “Mínima Luz” é um disco que se integrou no quotidiano das quatro paredes que partilhamos com o adolescente que estou farto de referir, e dois fiéis e peculiares amigos, de um modo orgânico. Serve uma série de propósitos, pinta em não sei quantos jantares, é frequentemente utilizado em “programas de rádio” e já rodou quase todo nas noites de giradisquice caseira ou com pista de dança. O que mais queria era ouvi-lo tocado de um modo irrepreensível… e sim, já sei que para as manias de querer determinadas cenas num concerto, ninguém tem paciência. Certo. No entanto, era mesmo isso! E se no dia anterior a minha definição de mitologia ganhou conteúdo para caraças, à primeira sequência sonora destes senhores, ficou toda amassada e sem valor predicativo. E a cena aconteceu e foi deslumbrante. Honestidade intelectual e um solo de guitarra provocador, tipo botão vermelho, mesmo a fechar. Foi à pró e de uma limpeza pristina.

© João Pádua
Três Tristes Tigres © João Pádua


Conversa, cigarros, casa de banho, cerveja e estamos outra vez “em frente ao Museu”… seguiu-se Alex Silva e quinze minutos depois decidimos ir visitar a exposição, o tal “outro Festival dentro do Festival” que mesmo sem bandas a fazer basqueiro consegue impor-se pleno de overdrive, distorção e agressividade intelectual. Do hall de entrada até à sala principal, o percurso assume-se, mais intenso a cada ano, como uma descida ao inferno. A consciência que entra nunca é a mesma que sai porta fora… começa por ser oprimida pela sumptuosidade da talha dourada, e enquanto avança até à sala gigantesca onde desagua vai sendo provocada pela estranheza de pequenos apontamentos em modo antecâmera antes do embate final. E depois um gajo esbardalha-se contra a condição humana. Em 2021 nauseou, em 2022 angustiou e em 2023 oprimiu e silenciou. O mais curioso no meio disto tudo reside no facto de este ser um ato de amor maior com que o braço artístico e poderosamente armado da Associação Basqueiro faz questão de nos presentear ano após ano, ficando no ar o apelo em relação à próxima viagem. A expectativa será sempre gigantesca…

 © André São Marcos
Sociedade do Cansaço © João Pádua


Estranhamente revigorados por uma incursão na “Sociedade do Cansaço”, aterrámos mais uma vez na frente direita do Palco Tendinha. M(h)aol foi um estouro fornicado, uma descarga de inconsequência doce com direito a um contraditório consequente. Espalharam a palavra que tinham para espalhar, agarraram o público já em modo recta final e deixaram-no a arder. Foi in your face, foi displicente, foi libidinoso, foi! O adolescente e o amigo até andaram ao biqueiro, tudo devidamente supervisionado.

© João Pádua
M(h)aol © João Pádua


A edição de 2023 do Basqueiral terminou em modo apoteótico. O concerto de Dame Area foi a descompressão final de um fim-de-semana de concretização. Ver os responsáveis por tudo isto chegarem-se à frente e a curtir largo com um sorriso estampado no rosto, rodeados por umas boas centenas de pessoas em plena comunhão, diz tudo sobre o espírito deste festival. Fazer parte da sua afirmação é um privilégio. Ao abandonar o recinto em anos anteriores saí sempre com a sensação de se ter subido mais um degrau. Este ano, houve a ousadia de subir o lanço de escadas inteiro. Uma operação logística sem falhas na óptica do utilizador e um alinhamento cerebral deixam no ar uma questão interessante:

Até quando vai o Basqueiral continuar a ser um dos segredos mais bem guardados do folclore festivaleiro português?

Basqueiral 2023 © João Pádua
Basqueiral 2023 © João Pádua


*foto de capa Basqueiral – “Sociedade do Cansaço” © João Pádua

Conteúdo escrito pelo criador de conteúdos Gonçalo Morgado

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