O serpenteio comunitário atingiu o limiar do horizonte onde o espaço e o tempo param (…)
Chegado a Âncora para o 3º dia de Sonic Blast, fui largado no limite até onde as viaturas podiam passar e fiz a pequena caminhada até à zona do campismo onde me aguardava a incessante dupla Irreversível de foto e vídeo. O dia de concertos já tinha arrancado, mas era ainda tempo de pequeno-almoço à medida do Sonic Blast aka Jack Daniels.
A vontade era de ir ao recinto usufruir dos concertos e do ambiente, no entanto, acabávamos de receber um par de informações por parte da comunicação do Festival. Era altura de entrevistar o organizador e programador do Sonic Blast, Ricardo Rios, e havia o ok para entrevistar os Black Angels às 16h. Mais do que ir ver os concertos havia que cuidar das responsabilidades. Por essa altura actuavam os The Black Rainbows e enquanto andávamos por alí a organizar o que nos esperava, fomos deitando ouvido ao bom Stoner-Fuzz-Rock-Heavy-Psych que o trio vindo de Itália debitava. O Sonic Blast também é isto, concertaços às 3h da tarde.
Ainda o concerto dos The Black Rainbows ia a meio quando o “nosso” Ricardo Rodrigues trazia com ele o Ricardo Rios, lá fomos em busca do spot para a conversa que podem assistir aqui. A coisa arrastou-se, não porque o spot não tenha sido escolhido rapidamente, ou que a conversa não tenha rolado fácil e ao 1º take, mas porque eu e o Ricardo Rios já não estávamos juntos desde pré-pandemia… Entretanto, o Tiago Quelhas já tinha desaparecido para ir trabalhar e actuavam os Spirit Mother, o que significava que era hora de ir para a 2ª entrevista do dia.
Chegado novamente ao recinto, o Tiago já esperava por mim na zona da imprensa após ter fotografado a banda de Long Beach, California. Aparentemente o concerto estava a ser cool. No rebuliço em que me encontrava era mesmo muito complicado estar a dar a devida e correcta atenção ao fácil, no melhor dos sentidos da palavra “fácil“, Stoner-Folk-Heavy-Rock que vinha do sistema de som. Essa minha agitação prendia-se com o facto de por essa altura já estar a aguardar pela conversa com o Alex Maas, vocalista de Black Angels. Não vou estar aqui com merdas, toda a história que tenho com uma das bandas que mais oiço e mais gosto dos últimos 15 anos, seria, e foi, um “life achievement moment“. Estava nitidamente nervoso e ansioso.
A conversa Irreversível com Alex Maas era para ser coisa de 3/4 perguntas e para durar 2/3 minutos. Era isso o combinado, mas não foi o que aconteceu. Depois de lhe dizer qualquer coisa como “Obrigado pela disponibilidade para esta pequena entrevista com uma pequena Magazine, confesso-me nervoso, afinal os Black Angels são uma das minhas bandas favoritas dos últimos 10 ou 15 anos e é um momento fantástico poder estar aqui contigo (…)” o comboio da conversa partiu e não aconteceram paragens nem em estações, nem em apeadeiros, o Alex entregou-se completamente ao fã. Foi de tal forma que aquilo que estava planeado, que seria a entrevista já ter saído como reel nas redes-sociais, como o que fizemos com os Desert Smoke ou o Ricardo Rios, necessita de edição/cortes. Brevemente publicamos isto:
Saí deste momento completamente starstruck. É a realidade. Sentei-me com a Inês e o Tiago a beber uma cerveja numa tentativa de equilibrar as minhas emoções e ouvia-se um sonoro do caralho. Eram os Earthless. A conversa entre os 3 Irreversíveis passava pelas duas entrevistas que tínhamos acabado de fazer e sobre os 2 primeiros dias de Sonic, sempre interrompida por um dos 3 Irreversíveis com qualquer coisa como: “Foda-se, granda som!“. Impelidos por esse “granda som” fomos até junto do palco assistir ao que restava do concerto dos Earthless. Stoner-Rock-Psicadélico daquele que vai do fechar as pálpebras e sentir friozinho na nuca, até ao abanar vigoroso da cabeça e corpo. É certo que não assiti ao início do gig, mas é certo também que os Earthless deram um espectáculo de grande nível, sendo inclusive uma das actuações mais comentadas entre festivaleiros nos momentos de pausa entre concertos por todo o resto do dia. Esteve aqui um dos grandes momentos do Sonic Blast 2023… por volta das 17h de um Sábado…. e ainda mal sabíamos todos nós o que nos esperava… logo a seguir.
Seguia-se um dos momentos mais aguardados por mim de todo o festival, o concerto de A Place To Bury Strangers. Primeiro porque sou fã da banda e até desfrutei do privilégio de numa Robotic Session os ter como público e essas coisas marcam, em segundo porque estava curiosíssimo por entender como o Sonic Blast iria receber uma banda que à primeira leitura poderia não ser a praia (no pun intended) para a larga maioria dos festivaleiros. O que sucedeu desde os 1ºs acordes até ao fim da prestação dos A Place To Bury Strangers é difícil, chega a ser injusto, colocar em palavras e terá sido dos momentos mais impactantes de qualquer edição do Sonic Blast de sempre. À 1ª música, a 1ª de 3 guitarras já tinha sido toda destruída. Acabaram a actuação com um amplificador, um baixo, um micro e um timbalão, no meio do público. Perder-me em descrições do que sucedeu é demasiado limitativo, este foi verdadeiramente daqueles momentos de “só quem lá esteve“… foda-se, os A Place To Bury Strangers foram até ao Sonic Blast e veni, vidi, vici.
Eyehategod foram das bandas que ao longo dos três dias senti que tinham mais antecipação por parte dos festivaleiros e amizades. Confesso que para mim não, até aproveitei para ir comer qualquer coisa, mas rapidamente, porque mesmo estando sem qualquer expectativa, a curiosidade cresceu ao ritmo de cada “não vou perder os Eyehategod” que ouvia entre conversas. Fui-me aproximando do palco, a primeira impressão não estava a ser a melhor de todas e deixei-me ficar ali atrás da mesa de som com o pensamento: “Gajo, dá o benefício da dúvida mais um par de temas.” Um par de temas depois estava na parte da frente da mesa de som. Mais um par de temas e aplaudia de braços no ar no final de cada música. O Sludge-Doom que os EHG desenvolvem tem milhares de Km´s de palcos, a banda conhece todos o Cm´s de uma actuação para uma audiência sedenta de Rock e entregaram um concerto eficaz e marcante, que agarrou no Sonic e o mastigou riff atrás de riff, tema atrás de tema, com um mar de festivaleiros a abanar a cabeça em consonância. Acrescentar que uma banda alcançar isto depois de uns Earthless e de uns APTBS deixarem marca, não apenas em mim, mas sim no festival, é o maior elogio possível e prova de competência. Das melhores actuações de Sluge-Doom que assisti de sempre.
Serve este momento também para sublinhar as escolhas para a programação e alinhamento do Sonic 2023. Às 20.30h deste dia já tinhas levado com três concertos que vão pairar nas conversas e imaginário de quem lá estava, isto com três bandas de carácter tão diferente. Pluralismo Rock com qualidade acima de qualquer suspeita, incluindo a minha.
Depois destas trombadas todas, estando aqui incluída a minha pessoal do starstruck moment, o quinteto Imarhan foi o surpreendente prato que o festival nos serviu para relaxar e curtir. Com o sol a pôr-se ao nosso lado, o Rock do deserto Tuaregue argelino foi perfeito. Percebia-se que em frente ao palco onde iriam actuar os Black Angels os lugares da frente estavam já tomados. Percebia-se também que muita gente ia aproveitando para os necessários reabastecimentos ou o inverso, o recinto estava em pleno movimento e ao ritmo da dança que os Imarhan proporcionavam.
Por esta altura entrei num substancial alvoroço porque se seguiam os Black Angels. Fui buscar uma cerveja e esgueirei-me até à frente do palco já bastante preenchida, local onde idealizava estar a levar com eles pela primeira vez. Nesse momento toca o telefone, era uma chamada que não queria deixar de atender, afinal ainda faltava algum tempo para o início do concerto e era um dos poucos gajos que me trata por gajo, havia urgência na partilha de sensações e assombros. A chamada acabou por ser de curta duração, aproveito ainda para uma ida ao WC, contudo quando me dirijo de volta para o palco onde ia decorrer o expectante concerto, o tal local à frente que eu queria já tinha ido à vida. Estava um mar de gente à espera dos Anjos Negros. Nesse momento pensei: “Que se foda, já nunca mais consigo chegar à frente, mas cheguei ao concerto de Black Angels! Vou buscar uma cerveja e volto para furar a multidão até onde conseguir sem incomodar ninguém“.
De cerveja na mão fui furando estava o concerto a começar ao som de “Prodigal Sun“, fui indo, indo, já com um sentimento de libertação, com a minha mente a ser tomada e o meu corpo em pequenos ondulantes movimentos, ia indo serpenteando até que alguém me agarra pelo casaco e diz: “Francisco, este lugar estava aqui à tua espera para veres Black Angels!” Foi aí que me recordei de tudo… da 1ª vez que ia ver Black Angels tirei o apêndice 7 dias antes. Da 2ª, parti o dedo mindinho do pé direito num móvel aqui em casa uns dias antes. E da 3ª vez que já tinha a ida a um concerto deles agendada, tive uma crise hemorroidal que obrigou a intervenção hospitalar a 4 dias do evento. O Ricardo Rodrigues, responsável pela comunicação do Sonic Blast, após a entrevista Irreversível ao Alex Maas, queria “obrigar-me” a ficar sentado na sala reservada à imprensa “… não vá acontecer qualquer coisa até à hora do concerto!“. Mas desta vez o meu lugar estava reservado e era ali, no Sonic, que ia assistir a uma das bandas que mais me empolga de sempre. E foi ainda durante a “Prodigal Sun” que bradei ao infinito: “I swear, it’ll be with you!” e as lágrimas, era inevitável foda-se, começaram a escorrer pelo meu rosto abaixo…
Seguiram-se meia-dúzia de músicas que me levaram ao extremo do desencarceramento auditivo, numa actuação irrepreensível da banda, suportada por som de incrível qualidade, oiço os 1ºs acordes vindos de uma guitarra que anunciavam a “Science Killer“, ao que respondo com um muito sonoro “Feel it!“. Arranco os óculos escuros da cara e deixo que a Serpente, ela andava por ali a rondar há algum tempo, apanhar-me e levar-me, deixo cair tudo em mim, de mim, alma nua, e acompanho os Black Angels com:
“Feel it
In your chest
If you can’t see it
Then it don’t exist
YEAHHHHHHHHHHH“
Nesse momento, um perfeito desconhecido que estava junto a mim, já me tinha perdido daqueles que me tinham reservado o lugar, agarrou a minha mão direita e levantou-a, dizendo-me ao ouvido: “Man, fuck, you are really feeling it!“.
Enquanto era entrelaçado ao som dos Black Angels vi-me envolvido num mágico ritual. Tinha sido definitivamente apanhado pela Serpente e deixei-me levar no seu dorso. Durante a viagem interdimensional fomo-nos cruzando com outros romeiros, no que se acabou por tornar numa emotiva e prodigiosa excursão emocional comunitária.
Tinha aberto um portal e deixei o acesso exposto e desimpedido…
O serpenteio comunitário atingiu o limiar do horizonte onde o espaço e o tempo param, ao som dos 1ºs acordes de “Young Men Dead” e do mote “We can’t live if we’re too afraid to die!”
(…)
*foto de capa: APTBS | © Pulsar
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