O recinto, ainda sem festivaleiros, já estava de banho tomado, vestido, cheiroso e preparava-se para começar a dar os últimos retoque na maquilhagem, desnecessária dada a sua beleza natural mas justificável perante a ocasião.
A primeira noite da edição de 2023 do Rodellus deu-me uma ressaca hiperactiva. Dormi pouco. Acordei transpirado e com o processo de destilaria ainda em curso. Mal abri os olhos senti a necessidade de saltar da cama. Desci à cozinha, bebi um café, fumei um cigarro, mandei um comprimido vermelho para exterminar a dor de cabeça e enfiei-me debaixo do chuveiro. Pela janela da casa de banho via o arvoredo contorcer-se ao sabor do vento enquanto a água fria me agredia a tromba e cortava a respiração. Ao fim de alguns minutos, o choque térmico foi-se gradualmente transformando numa sensação reparadora. Deixei-me ficar até a pele começar a enrugar… respirei fundo como que a puxar o tumulto de todas as memórias da noite passada e quando dei por mim, estava outra vez em Ruílhe. A escuridão fora substituída por uma mancha verde realçada pelo azul do céu. O carreiro mal iluminado percorrido na noite anterior transformou-se numa espécie de portal de acesso a um lugar idílico onde a eventualidade de dar de caras com o lobo mau fora substituída pela hipótese de me cruzar com Adão e Eva de genitálias ao dependuro em romaria para a degustação do fruto proibido. O recinto, ainda sem festivaleiros, já estava de banho tomado, vestido, cheiroso e preparava-se para começar a dar os últimos retoque na maquilhagem, desnecessária dada a sua beleza natural mas justificável perante a ocasião.
Parte dos Irreversíveis, a facção fofinha, estava pelo backstage à conversa com o Leonel Miranda e houve outra vez abraços e beijos. Reviveu-se a sexta-feira, revisitaram-se outros palcos, desenharam-se abordagens e alinharam-se expectativas para a noite a arrancar daí a umas horas, beberam-se as primeiras cervejas do dia e deixou-se entrar o alvoroço. Do nada saltou a dúvida sobre o paradeiro do Senhor Irreversível, respondida pelo universo em forma de telefonema. Estava à nossa espera para jantar. Não resistimos ao apelo e em menos de dez minutos, mais beijos, mais abraços, mais conversa. Depois de pousarmos as tralhas irrompemos pela cozinha de câmara fotográfica em riste. Para a posteridade ficou o registo de uma máquina incansável de servir bem, com uma boa disposição tão reconfortante como o frango estufado que nos puseram no prato. Concluído o repasto, regressámos ao recinto pouco depois de o sol se ter posto a andar.
Pelo caminho não foi difícil perceber que a segunda noite do Rodellus ia ter casa cheia, percepção confirmada uns dias mais tarde com a comunicação do primeiro soldout deste festival à beira de um campo de milho plantado. O desconforto provocado pela chuva que foi caindo no dia anterior fora trocado pelo entusiasmo latente de mais um sonho numa noite de verão prestes a acontecer… os dados estavam lançados e o destino estava ali, mesmo à mão de semear, pronto a cumprir-se.
Entre uma ida à casa de banho, um café, um cigarro e uma visita ao bar onde estava o tiroliroliro, começou o primeiro concerto da noite. O Stereoacid estão num lote muito restrito de músicos que conseguem levar uma multidão do ground zero ao zénite sem prelúdios ou aquecimentos. Do primeiro espasmo ao último esgar sonoro agarraram a plateia, fizeram-na dançar, transpirar, gritar, saltar. Foram o ponto de não retorno que se impunha e passaram a mensagem com pragmatismo, mensagem essa bem assimilada pelos “Corajosos de Ruílhe” que lhes devolveram em dobro a cena que em palco deixaram em triplo. Um festão para ouvidos esclarecidos, de abordagem pouco óbvia, com rigores de engenharia sonora de ponta, a espaços implacável. No advento da segunda noite, o Rodellus levantou-se e dançou. O coração só foi ao sítio depois de ter contado até dez e respirado fundo umas trinta vezes. A água mole lá acabou por partir a asa da cesta que estava tão sossegada à espera da vindima antes de ser desencaminhada pelo cântaro para uma ida à fonte pela verdura.
Fiz o mesmo e quando finalmente o encarei, embarguei, deixei cair ao chão todas as palavras que tinha para lhe dizer, dei-lhe um beijo na cara, outro na mão, e também de olhos lavados em lágrimas, fui suportado pelo ombro amigo do gajo que me chama gajo (…)
O bar no centro do recinto estava em alta e pedir uma cerveja não foi tarefa fácil… perdido em pensamentos e ainda a digerir os Stereoacid fui surpreendido pela lua a subir por detrás do arvoredo ao lado do palco. Atendido o pedido, saudei-a de copo cheio e rumei ao backstage. Em conversa com a Rute e a Raquel, de imediato apelidadas de “As Rodellas”, ficámos a par do dinamismo da vertente da comunicação do Festival em marcha nas redes sociais e da resposta entusiasta que os teasers e questionários sobre as bandas lançados ao longo do fim-de-semana estavam a ter. Duas miúdas de mente irrequieta, sorriso radiante, trato fácil, exímias contadoras de histórias, de uma descontracção à altura do profissionalismo que a tarefa em mãos exigia. Conhecer quase todas as rodas dentadas da máquina que fez a edição de 2023 do Rodellus foi uma experiência enriquecedora, com um contributo inegável neste processo de aprendizagem que a colaboração com a Irreversível me tem proporcionado. Começo a pensar seriamente na possibilidade de aumentar a capacidade de armazenamento deste coração deslumbrado com tanto talento e boa onda!
Ao final da tarde, as Adwaith estavam recatadas a apreciar os vagares do verde circundante e ao longe percebia-se que a espaços iam trocando entre si umas palavras aqui e ali, com a serenidade típica de três navegantes profundamente conhecedoras das correntes e rotas de um mar de tranquilidade. Uma horas depois, já em cima do palco, a história foi outra… mantiveram a postura de quem capitaneia a sua cena, mas de instrumentos incorporados na personagem, o mar começou a revolver-se, as correntes ganharam outro ímpeto e o barco viu-se subitamente no meio de uma tempestade agressiva e melancólica que não deixou ninguém indiferente. Ainda durante a primeira música, percebi que tinham deixado de estar à mercê da intempérie para subitamente se transformarem na própria intempérie. Hollie Singer é um portento vocal com um som de guitarra depurado, fruto de uma procura incessante pelo timbre ideal iniciada há já alguns anos. Esbagaça que se farta e faz o que quer do instrumento que toca. Sabe ser rude e sabe ser doce… esbanja charme, simpatia e é dona de um sentido de humor adorável. Gwenllian Anthony é a personificação da pica. Trata o baixo por tu e instrumentaliza-o com uma energia negra apenas ao alcance de quem entende a herança sonora do pós-punk. Heledd Owen transfigura-se atrás da bateria e agiganta-se de um modo quase selvático. Ouvi a primeira, a segunda, à terceira estava colado na grade e quando a função se esgotou, criei uma nota no telemóvel com o nome da banda escrito em maiúsculas. “Bato Mato”, lançado em 2022, já foi desde então ouvido de fio a pavio e a incursão das Adwaith pela KEXP também. Agarraram-me pelos colarinhos e transformaram-me num stalker desfeito em aplausos. Cyngerdd anhygoel!
Quando a 10 de Maio foram anunciadas as primeiras confirmações do alinhamento da edição de 2023 do Rodellus, ainda não tinha visto Sereias ao vivo. Por esses dias ainda os conhecia superficialmente e estava longe de imaginar o que iria acontecer semanas mais tarde no Basqueiral. No final da tarde de 17 de Junho desmoronei pela primeira vez na vida durante um concerto e afirmar ter ficado sem chão é um eufemismo pueril para descrever o que me aconteceu… operou-se uma mudança e ficou muita coisa virada do avesso. Seis semanas depois desse momento ia vê-los outra vez. Estava num desassossego insuportável e o facto de a coisa estar para acontecer em horário nocturno só piorou o estado em que me sentia. Voltei a colar na grade mesmo em frente ao Kauê Gindri, guitarrista endiabrado, iluminado por um holofote vermelho-inferno. Descalço. Electricidade e fio de terra. Parecia querer desafiar uma qualquer lei da física com as mais acrobáticas dinâmicas à volta do instrumento que manuseou com amor. Uma guitarra que já pertence ao corpo que a faz vibrar e debitar notas sentidas, antes de mais, do lado de dentro. A presença da Arianna Casellas foi uma novidade surpreendente em relação ao concerto de Santa Maria de Lamas, contribuindo para que as palavras declamadas se transformassem em “corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas”. À medida que os minutos iam passando, e passaram depressa demais, a voz cheia de vozes do António Pedro Ribeiro fez referências a Blake, ao Céu e ao Inferno, forçou a abertura das portas da percepção. Sempre com um ou até dois dedos em riste apontou o desapontamento de quem já se absteve sumariamente de estar no mesmo plano dos demais, não havendo nesse estado qualquer motivo para alarmes. Ao longo de todo o espectáculo serviram-se antagonistas à discrição aos que ainda persistem do lado de cá. Pairou um sentimento de que “quem não está bem, que se mude”. Há demasiada gente para ajudar e é preciso querer-se. Fundamentalmente é preciso, crer-se. Ficou claríssimo que o modus operandi dos Sereias em cima do palco é o reflexo da forma como existem fora dele. São uma entidade generosa e solidária, plena de todos os amores que o amor comporta, da fraternidade ao desvario. Tive a sorte de apanhar o Kauê e a Arianna no final do concerto e consegui conversar com eles durante alguns minutos. A conversa é nossa e a forma como se deram a ela foi de uma disponibilidade inigualável. Imediatamente a seguir, cruzei-me com o Senhor Irreversível – vimos o concerto bem próximos um do outro – de olhos lavados em lágrimas depois de ter abraçado o António Pedro Ribeiro. Fiz o mesmo e quando finalmente o encarei, embarguei, deixei cair ao chão todas as palavras que tinha para lhe dizer, dei-lhe um beijo na cara, outro na mão e, também de olhos lavados em lágrimas, fui suportado pelo ombro amigo do gajo que me chama gajo e me proporciona momentos como este.
Fomos em passo lento até ao recinto já a procissão de José Pinhal Post-Mortem Experience ia no adro. Perante tamanha e consensual celebração, terminámos a dupla jornada que nos levara a Ruílhe com a sensação de que às vezes também temos a certeza de estar no sítio certo à hora errada. Resta voltar mais tarde. Um dia cá nos veremos novamente. Vamos num pé e regressaremos noutro.
Conteúdo escrito pelo criador de conteúdos Gonçalo Morgado.
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