Com um dos pés já quase fora do rio que foi o chão que nos aparou por estes dias, o coração divide-se entre desfrutar o máximo e a saudade que já o ronda.

É o rio que nos chama.
E é nas suas margens que correm em simultâneo, as sonoridades do Nascentes. Chama sem pressa de chegar à foz, e quer conhecer a silhueta das pedras que permanecem deitadas para nele se banharem. O verde envolvente deixa-se reflectir no espelho que corre a tempo certo, a passo com os tons que nos convidam a ocupar lugares sentados ou em pé.
Em terras abundantes de cuidado e preservação pelo verde, as sonoridades são seduzidas a permanecer por estes dias num sonho de fio prateado. A viagem faz-se a sabor do vento e da frescura da água que faz de Fontes terra fértil.
O cenário natural concede o esboço mais que perfeito de um sonho que se quer tocar para o conhecer real. E assim o é.

© Raquel Folião
Nacentes © Raquel Folião


A música que ocupa lugar e tem influência na matéria, enche os espaços que não são preenchidos pelo verde saturado na margem do Lis, assim como entra nos espaços que cada um de nós lhe concede. A vontade de vermos preenchidos espaço em nós leva-nos à condição de sermos portadores de orelhas compridas, olhos demorados e de poros altamente sensíveis e alertas para que permeabilizem o devir.
A máquina que nos liga uns aos outros ganha vida quando encontra pontos de recarga que confirma batimentos cardíacos suficientes para um estado salubre. A música de Ligados às Máquinas, é o prelúdio necessário nesta prescrição médica que nada aponta como contra-indicações, à excepção da possibilidade de uma carga emotiva acima da média. Tratam a música como um exercício simbiótico que provoca uma reacção química a quem os ouve. Estes músicos-médicos dão-nos a mais valiosa lição que expulsa pré-conceitos das margens da ignorância para que mergulhem no nosso conhecimento. A música não tem fronteiras nem limitações, ela pode querer-se de pé, sentada, cansada ou calma. A única certeza é que tem lugar de colo a quem lhe estender os braços.  E isto, ressalve-se, não é para todos. Cada um de nós, perante medicina de ponta, cria pele de galinha quando se deixa envolver no som destes músicos-médicos que nos transpõem para um sonho etéreo, como se de bailarinos delicados nos tratássemos e assim flutuássemos no rio que desce ali mesmo ao lado. Acabámos todos ligados e a calcular um pouco do tanto que vai dentro da máquina de cada um.

Nascentes © Raquel Folião
Ligados às Máquinas © Raquel Folião


A cura também é espiritual e, uma vez mais, a música sara dores e Carincur surge na extensão de corpos a transbordar com a necessidade de serem leves.
O canto e a performance de Carincur rompe em nós de maneira flamifervente, deixando arder o que já tem tido viagem marcada há algum tempo mas vai adiando a hora de partida.
O que nos arde é lavado pelas vozes do Lis (coro das Fontes), a água que lava, que cai, que sai, que escorre e não escolhe. Fisiológica e espiritualmente curados, saímos do primeiro dia de Nascentes de corpo e cabeça leve, e os demónios internos, arderam e deixaram-se lavar no rio que ama e sara a quem se atreve passar pelas suas margens.
Já sabendo do que se trata o Nascentes e o atropelamento de gente boa e de música que convalesce, segue-se o peso necessário para espantar possíveis fantasmas que teimem em pairar.
Antes de o sentirmos na segunda noite com Ayamonte Cidade Rodrigo e Gala Drop, a Joana Guerra soprou-nos do lado esquerdo do ouvido e, por consequência, entrou-nos pele adentro ficando ali alojada, mais as cordas do seu violoncelo, num chão vermelho com batidas de cavalos selvagens. Este foi o espaço interno, onde nos aconteceu o concerto de Joana. O espaço externo teve lugar na Eira da Dª Fátima que convidou o sol tardio em tons alaranjados para fazer jus a uma tarde de ouro.

Joana Guerra © Raquel Folião
Joana Guerra © Raquel Folião


Gala Drop, convida o início da noite em ritmos cósmicos de sintetizadores devidamente incumbidos de nos transportar até ao futuro espacial. A viagem faz-se em conjunto, no jardim da Dª Céu e do Fernando, acautelando o uso devido de equipamento galáctico. Fez-se a contagem decrescente para a missão de descolar, chegando assim a hora de nos atrevermos a pisar solo extraterrestre.
O céu foi-se apagando da luz solar para a passadeira de estrelas entrar e indicar-nos a rota galáctica de Gala Drop.

Após a viagem espacial, é tempo de conhecer a firmeza do chão que vai sustentar os pés que se elevam para nele baterem com força, à indicação das determinantes batidas de Ayamonte Cidade Rodrigo.
A adega do Luís, vulgo, Nharro, humildemente recebeu o peso de uma aguardente tardia que contou com vozes estridentes, riffs acelerados e bateria que destila o suor de quem os acompanha. A noite foi servida em roda de provas entre amigos, envelhecidos em madeira de carvalho.

© Raquel Folião
Ayamonte Cidade Rodrigo © Raquel Folião


A ressaca é dura e nada melhor do que percursão pura para voltar a ordenar ritmos cardíacos. Coube a Ricardo Martins & Dada Garbeck + Trio de Percurssão a missão de nos dar a conhecer o resultado de uma receita cura ressacas, cozinhada numa residência artística nas Fontes. Na Eira da Dª Lúcia, o sol aproveita as altas lajes para se espraiar, convidando quem vai chegando para tirar notas de uma receita que se criou na anfitriã Fontes, com ingredientes locais.

© Raquel Folião
Ricardo Martins & Dada Garbeck + Trio de Percurssão © Raquel Folião


Brindou-se a três grandes premissas que ditam o saber do bom vivente: a água, o pão e o vinho. A música fez-se por isso, nesta tarde, a mesa e as cadeiras da Eira que humildemente convidou amigos para conviverem sem que faltassem estes três pontos vitais. Esta é uma mesa convidativa, com certeza. E não falhámos, ao sentarmo-nos e deixarmos entrar a poção vital correr os nossos rios internos.
Ainda de barriga cheia deste farto repasto, ordenaram-se filas de mesas e bancos para ser servida a jantarada comunitária, para voltarmos a testemunhar a generosidade e meiguice das gentes de Fontes.

© Raquel Folião
Nascentes © Raquel Folião


A digestão fez-se de papo cheio de gratidão e sem arrelias para depois queimar calorias até ao cenário de floresta exuberante e quente de sons de Cabo Verde.
Avançámos na densa vegetação até Kriol, e sentimos os pés a escaldar e a pedir para desenharem ritmos de fogo no chão.
Cedemos o corpo e a alma à temperatura que Kriol pediu e o calor só viria a sair do corpo quando atravessássemos a vegetação de regresso a casa. Já da alma não podemos dizer o mesmo, pois ainda lhe sentimos a centelha persistente.

 © Raquel Folião
Ambiente Nascentes concerto Kriol © Raquel Folião


Há músicas que possuem termóstato e Kriol provoca-nos uma febre que arde e é expulsa do corpo ao ritmo que dançamos sons cabo-verdianos.
Lembram-nos ainda que esse tempo de hoje necessita da intervenção de homens grandes para que amor e coragem sejam as bandeiras levantadas de um tempo que corre, quando deveria andar. O fogo fez-se sentir dentro e aqueceu-nos noite fora.
Com um dos pés já quase fora do rio que foi o chão que nos aparou por estes dias, o coração divide-se entre desfrutar o máximo e a saudade que já o ronda.


(continua na página 2)

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