A gig.ROCKS! é uma estrutura artística 360º sediada em Braga, especializada em booking, management e production. É tudo isto e muito mais, fazendo as coisas com a cabeça de quem sente com o coração. Hoje com Jorge Dias, fundador e produtor na gig.ROCKS!
Cá estamos.
O arranque da primavera verão portuguesa traz consigo cartazes em catadupa, para todos os gostos e feitios, para miúdos e graúdos num verdadeiro refastelar artístico que entusiasma ao ponto de pensarmos que está tudo bem. Mas será que está?
Será que a mensagem do “Vai ficar tudo bem”, instaurada como tónico moral e psicológico para a
opinião pública nos já distantes tempos de Covid -19, ganhou asas, mutou e se alastrou a todo um
sector cultural que positivamente olha para o futuro com um sorriso na cara e meia dúzia de trocos no bolso? Se a resposta for positiva passamos claramente para um novo estágio de precariedade conformada e, se assim for, well, i’m done with that.
Mas calma.
Voltemos a 2020, ano sobejamente profetizado e abençoado por inúmeros planos e vidas que subitamente ficaram em suspenso, presas em 4 paredes para o bem de todos nós. Nesse contexto de um multiverso de saúde pública para o qual nenhum de nós estava preparado, abriu-se espaço de discussão e análise para a actividade artística.
As artes, nas suas várias formas de expressão, encontravam-se sitiadas, não tendo maneira de se mostrar, de agir, de se instalar e de inspirar. É neste contexto que surgem os primeiros apoios do estado, em formato de pílula dourada que trazia consigo um efeito secundário pernicioso: A dotação, qualificação e distribuição do apoio estava destinado, e bem, a quem efectivamente tinha actividade ou exercia no sector cultural. Em miúdos, quem fizesse descontos com o CAE certo estava safo e poderia desconfinar a ansiedade de não ter rendimentos da sua actividade. E quem não tinha?
Pois bem, quem não tinha teria que fazer o mesmo que já fazia em 2019, 2009 ou 1999. Desenrascar-se. No meio da urgência não se teve o cuidado de qualificar um sintoma funesto chamado precariedade, que condicionou milhares durante décadas, à não declaração dos “reais” rendimentos. Não com o intuito de dissimular o estado mas sim, de ter rendimentos suficientes para chegar ao fim do mês com as contas em dia.
No dia em que tentaram submeter o seu pedido de apoio, well, computer said no.
A prescrição médica, passada num drink de final de tarde, de 100 mg de noção começava a fazer o efeito desejado.
Jorge Dias
Graças a alguns movimentos cívicos organizados, a algumas associações com influência política e muita boa vontade lá se conseguiu entrar nessa torre de marfim que é o Gabinete do Ministério da Cultura e puseram-se alguns pontos nos i’s, trilharam-se novas narrativas e gerou-se o que alimenta toda esta gente, esperança. A prescrição médica, passada num drink de final de tarde, de 100 mg de noção começava a fazer o efeito desejado.
Foram criados planos de fomento à criação artística, estabelecidos protocolos de protecção social, redefiniram-se matrizes de acção e finalmente, começou-se a falar de um estatuto do artista de uma forma séria e concreta. Renascia a chama da recuperação e, em alguns casos até se ateava o fogo de um país que valoriza os seus artistas, os seus agentes culturais e respectivas estruturas que com o passar do tempo de informais deixariam de ter nada.
No meio de tanta receita médica, era também criada em 2021, a Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses, vulgarizada hoje sob a sigla RTCP. Para efeitos narrativos, chamemos-lhe somente A Rede.
Uma rede que na sua criação entendia o mundo como um novelo entrelaçado entre artistas e estruturas e assumia uma interdependência clara entre os palcos e os agentes que os ocupavam e os faziam ficar ocupados. Tudo certo até aqui mas, mais uma vez, o esforço foi curto, demasiado reactivo e não ponderado.
Se por um lado não há oposição nenhuma à ideia de que as estruturas artísticas tenham acesso a um fomento à actividade, podemos também concordar que o povo quer pão e não caviar. Esta rede, criada com as melhores das intenções, deu uma volta de 180º e acabou por agravar assimetrias territoriais, distanciar meios artísticos e criar uma competição artística que bem pode ser encarada como uma luta pela sobrevivência. Para uns, dos seus sonhos. Para outros do seu modo de vida e isso não está certo.
Canta-se a peito cheio o papel reformador desta iniciativa mas, uma vez mais não se tem o discernimento de se analisar os efeitos secundários da medicação. Estando explícitos os objectivos desta rede, a verdade é que os mesmos não estão a ser atingidos. Se por um lado se define como metas uma maior coesão territorial, um significativo reforço da circulação de espectáculos e articulação programática entre estruturas, convenientemente se mascara a admissibilidade das candidaturas e alguns critérios de apreciação que podem e dão, em efeitos secundários indesejados.
Vejamos o papel dos directores artísticos que neste contexto e ao abrigo do apoio, vêem-se obrigados a programar com um ano de antecedência retirando qualquer tipo de rasgo, de imediatismo e de urgência artística. Tornam-se autómatos do algoritmo (…)
Jorge Dias
O maior critério de ponderação (45%) reflecte sobre a “qualidade artística e relevância cultural do plano de programação” ou seja, todas as estruturas partem, aparentemente, em igual posição para a apreciação da sua proposta programática. O que se esquece aqui é que os territórios não são todos homogéneos e que, devido a essa falta de homogeneidade, muito do talento artístico entre companhias de teatros, encenadores, técnicos de som e muitos outros fazem essa diáspora rumo à capital onde encontram melhores condições, mais exposição e um maior reconhecimento do seu trabalho.
Um outro critério aponta também a factores como o “o historial, mérito e adequação da entidade e equipa”. A função de um espaço de cultura não se deveria imiscuir somente com o currículo dos agentes que o operam, sendo que é admissível a valência de uma equipa artística com pedigree, muito se pode e deve falar sobre a capacidade de retenção destes agentes culturais em determinados territórios. As assimetrias são demasiadas e o fosso entre territórios aumenta de dia para dia, sendo a Rede mais um factor de deslocalização, de candidaturas em atacado ou em comandita que resolvem estrategicamente alguns “critérios”
Necessariamente, “No caso dos acolhimentos, os planos devem garantir a apresentação de, pelo menos, 15% de obras que tenham recebido apoio da DGARTES no domínio da criação, e realizar, no mínimo, 10% de co-produções originais.” A verdade é que a supracitada “qualidade artística” associada ao “historial, mérito e adequação da entidade e equipa” é por si só uma declaração de divisão, que privilegia quem tem mais há mais tempo, não fazendo realmente o trabalho de base de activar e desenvolver territórios e comunidades em igual proporção
O constrangimento é tal, que mesmo no topo das estruturas se denota a pressão que existe na relação entre a administração e direcção artística, por vezes com objectivos dispares quanto à função do espaço e que, por este enquadramento tiram validade ao papel de direcção artística. Vejamos o papel dos directores artísticos que neste contexto e ao abrigo do apoio, vêem-se obrigados a programar com um ano de antecedência retirando qualquer tipo de rasgo, de imediatismo e de urgência artística. Tornam-se autómatos do algoritmo, vendo-se enrodilhados nesta Rede que em vez de desbloquear, condiciona não promovendo um diálogo franco, sério e objectivo sobre as várias manifestações artísticas. A Rede é de tal forma entrelaçada que algumas destas estruturas perdem a força reformadora que tinham no território, tornando-se corpos estranhos ao local onde estão inseridas
E o dinheiro, como qualquer medicação, gera dependência. Dependência de fundos vitais para restabelecer um equipamento cultural e a sua imagem no contexto nacional, mas que, devido à quotização d’A Rede, obriga a decisões que carecem de profundidade e estratégia artística para o território. A este contexto podemos também associar os atrasos sucedâneos dos resultados das candidaturas realizadas aos programas de apoio lançados pela DGARTES que afectam tempos de execução de projectos e agora, também, tempos concorrenciais d’A Rede.
A ideia é boa e não há dúvida das suas intenções, mas o problema reside na base, na falta de empatia e reconhecimento da precariedade artística, na falta de visão estratégica para um território e para os seus agentes e de automatismos criados para circunscrever a arte a um formato quadrado. E não será com o aumento das dotações dos programas que se resolverá este tipo de questões. O aumento das dotações pode levar a fenómenos de subsidiodependência em todos os agentes culturais, sejam eles espaços, companhias ou estruturas artísticas levando a um futuro onde a arte, para acontecer, tenha que estar umbilicalmente ligada à máquina do estado para acontecer e isso está e estará sempre errado.
Por entre a penumbra e o nevoeiro, A Rede já arrancou trabalhos e devem estar em rebuliço com a eminência dos resultados do apoio à criação (serão divulgados em Julho) que afectarão a sustentabilidade de várias estruturas artísticas, formais e informais. Mais uma vez, os fundos serão insuficientes e o “historial, mérito e adequação da entidade e equipa” irão perpetuar o fosso entre o passado e o presente, não semeando para um futuro que poderia e deveria ser diverso e inclusivo para todos os territórios.