O encore da massa à lavrador de sexta-feira foi nada mais nada menos que uma faustosa feijoada.
Quando a vida te dá pensos rápidos, és um idiota de proporções desmedidas se não fizeres um curativo. Fomos acordados por esta pérola da sabedoria popular para segundos depois semicerrarmos os olhos à conta das alegrias de um quarto virado a sul num início de tarde de verão. O filme da noite de sexta-feira bateu em time lapse. As mãos foram à cabeça em jeito de prece às divindades do esoterismo boémio e acabaram a esfregar a remela. Seguiram-se longos minutos de ronha até ao teletransporte para o chuveiro. Daí a estarmos cheirosos e frescos como um molho de espinafres a três horas de atingir o prazo de validade foi um crepitar de falanges. Saímos de casa a meio da tarde without a care in the world para uma conversa de pé de orelha com uma francesinha, um prego especial com molho, um rissol, uma chamuça, um fino, uma cidra, um café e uma italiana. Entrámos no automóvel. Em menos de uma hora estávamos a entrar no backstage do Souto Rock pelo segundo dia consecutivo e desta feita não foi preciso GPS. Fomos lá ter direitinhos…
Os dois fotógrafos mais fofinhos de sempre já andavam por lá a destrocar magia na companhia do Senhor Irreversível. Tinham acabado de entrevistar o Daniel Catarino para a magazine. Beijos, abraços, trocas de fluidos sobre os concertos da noite anterior, uma tour pelo set da entrevista com direito a exploração botânica e uma visita ao local dos natais passados dos jantares do Souto Rock. Seguiu-se uma paragem na esplanada do Plátano, ocupada pela malta do Basqueiral que trouxe consigo os dois intervenientes daquele pedido de casamento insólito que aconteceu no concerto de Linda Martini no Party. Sleep.Repeat.. Estávamos a jogar em casa, pela segunda jornada consecutiva.

A hora do jantar aproximava-se e recolhemos ao backstage para mais uma tareia gastronómica com o alto patrocínio da Dª Teresa e da Dª Florinda. O encore da massa à lavrador de sexta-feira foi nada mais nada menos que uma faustosa feijoada. O verde branco capaz de fazer corar enólogos pretensiosos voltou a pintar no pedaço, tal como as conversas paralelas e perpendiculares à mesa… a determinada altura precisei de ir buscar guardanapos e foi aí que dei de caras com a estrela de rock mais vibrante do festival. A pequena e doce Inês, pessoa feita com oito meses de idade, deu-se a conhecer num turbilhão de sorrisos despojado de preconceito, com salpicos de baba e curiosidade. Conversámos alguns minutos sobre a fugacidade do tempo, as dores de crescimento e fizemos uma competição de caretas… a sua agenda altamente preenchida de compromissos inadiáveis ditou o fim abrupto do nosso encontro meteórico e lá regressei à feijoada, de alma a rebentar de ternura.
De volta à mesa, o Senhor Irreversível puxou dos galões de agitador para assinalar o repasto com um brinde mais do que merecido às cozinheiras de plantão. Abençoadas. Logo a seguir apareceu o Leonel, seguiu-se outro sonoro erguer de copos e a alma estava súbita e naturalmente à solta.
Aprendemos bem a lição na noite anterior e trocámos aquele shot de bagaço do Armagedão por um concerto… ou se calhar até não. Para ser completamente honesto já não me lembro muito bem. A noite de sábado abriu com os Demure, banda assumidamente à procura de outros voos. O golpe de asa foi ambicioso, tendo a sua audácia sido recompensada pelo carinho de uma plateia a abarrotar. O rock barcelense está pronto para exportar mais um produto da sua heterogénea oferta e desconfio que num futuro próximo nos voltaremos a cruzar.

Uma das muitas particularidades do Souto Rock é mesmo o facto de um gajo conseguir ver os concertos com uma garrafa de cerveja na mão. Um luxo que se paga caro, tal é a romaria às instalações sanitárias. Numa dessas viagens estava entretido a governar vidas na retrete das senhoras porque a dos homens estava ocupada e do outro lado ouvi a voz de uma miúda anónima que me perguntou “há papel higiénico desse lado?”. Respondi que sim e passei-lho por uma janela de correr, entreaberta junto ao tecto. Outra das muitas particularidades do Souto Rock – um backstage patusco e completamente descontraído.
A entrevista gravada umas horas antes ao Daniel Catarino foi tema de conversa entre os Irreversíveis desde o final da tarde. O que ouvi sobre o assunto deixou-me a alarmística do sonar a faiscar e quando o concerto começou, percebi que a forma como ando a consumir música ia ser mais uma vez posta em causa. Depois da pedrada do Tyroliro na noite anterior, este era o segundo prenúncio da queda do filho pródigo. Mas já lá vamos… o Catarino sabe gingar e dá umas voltas de guitarra em riste à moda do Johnny Cash. Tira partido da distorção à cara podre e canta coisas incendiárias. Esbanja aquele charme letrado e assume com orgulho todas as partículas que compõem o ADN da sua visão das coisas do mundo. É singular. E para compor o repolho faz-se acompanhar por dois músicos para lá de talentosos – um tal Manuel Molarinho que toca baixo como o raio que o parta, curte milhões em cima do palco, canta como se não houvesse amanhã e é de uma generosidade irrepreensível para com um outro tal Pedro Rafael, baterista intenso, de alma livre, irrequieto, solto, sempre sorridente. Desconheço como se deu o encontro para lá de feliz destes três personagens, mas o produto desse desatino cosmológico é um Rock’n’roll depurado de merdas, honesto e objectivo. Sobre a queda do filho pródigo, assumo, mais uma vez, a minha ignorância sobre este momento entusiasmante da música portuguesa, cantada em português, que de um momento para o outro pontapeou do pedestal todas as predilecções e considerações arrogantes em torno da genialidade dos artistas estrangeiros por comparação aos nacionais. A frase é mais batida que uma taça de claras em castelo, mas o que é nacional, é mesmo muita bom!





Cheguei pimpão ao balcão do Plátano e quando me preparava para pedir uma Super Bock responderam-me com “dessa já não temos”. Por momentos ocorreu-me pedir dois pastéis de bacalhau mas acabei por me governar com um shot de tequila e uma Heineken.
Voltei a cruzar-me por breves momentos com a estrela de rock mais vibrante do festival. A pequena e doce Inês… deliciada com a parafernália de luz e som envolventes, perdida de sono e ainda assim sorridente, agarrada ao pescoço da mamã, segura e feliz… para o ano já não se lembra de mim. Deixou-me sem fôlego… e durante o processo de acerto da cadência do respirar voltaram a trocar-me as voltas aos pulmões quando me apresentaram a Dª Maria de Fátima, nada mais nada menos que a matriarca anfitriã de todas as criaturas que ao longo dos últimos anos têm feito acontecer o Souto Rock. E claro está, a mãe do Leonel. Foram cinco minutos de partilha intensa de vida em torno das alegrias da maternidade, dos prazeres simples de uma casa cheia, dos elixires da eterna juventude, da serenidade inquieta como dispositivo propulsor da concretização. Despedimo-nos emocionados… caraças!
Cheguei pimpão ao balcão do Plátano e quando me preparava para pedir uma Super Bock responderam-me com “dessa já não temos”. Por momentos ocorreu-me pedir dois pastéis de bacalhau mas acabei por me governar com um shot de tequila e uma Heineken. Adormecida a consciência e revitalizado o corpo rumei em passo largo até ao palco. Os albicastrenses Wakadelics traziam na bagageira da carrinha uma promessa de implosão auditiva que levaria a plateia a órbitas de Martes e afins, mas a coisa não foi bem assim… a plateia foi a Marte mas não orbitou em torno de corpo celeste algum – bateu de frente sem conseguir proteger a cara. O aparato sonoro foi estrondoso. Tocaram alto, levantaram brita, pintaram um quadro, pintaram a manta. Um concerto endiabrado, enérgico, vibrante e fresco… cheio de malha! Ah, já me esquecia – Mártires, um dos temas tocados nessa noite, já está integrado no meu quotidiano sonoro.



O tempo tem o raio da mania de esvoaçar quando um gajo se está a divertir e, infelizmente, a última noite do Souto Rock não foi a excepção que confirma a regra. Enquanto o compartimento superior da clepsidra se ia esvaziando, a agitação em frente ao palco para a função final ia crescendo. O auditório compactou ao ponto de quase se conseguir sentir o bater desgovernado de centenas de corações em suspenso, ansiosos pelo primeiro segundo do primeiro acorde da primeira música dos Black Wizards… e ao primeiro segundo do primeiro acorde da primeira música dos Black Wizards aconteceu uma espécie de epifania de proporções bíblicas, semioticamente disfuncional porque do nada tive a sensação de estar virado para Meca.


O Souto Rock fechou o tasco com uma banda intergaláctica, claramente avessa às palpitações do vedetismo alimentado a polegares para cima, orientada para a produção musical enquanto conteúdo de excelência e proficiente até mais não na vertente performativa. Raw power com acabamentos de luxo em modo vocalista, guitarrista, baixista e baterista de Hamelin. Levaram-me na cantiga e fizeram de mim rato e sapato… celebraram o celebrável até ao expoente máximo da insanidade. Fizeram estrago, assumiram a despesa e, acima de tudo, não foram maiores do que ninguém. Tal como todos os outros músicos que estiveram entre aquelas duas oliveiras, foram quem são e isso é cada vez mais raro e, acima de tudo, é de um gajo ficar de cabeça perdida.



Se o mundo fosse uma coisa em modos, haveria uma edição do Souto Rock todos os fins-de-semana… quando é que é o próximo, mesmo?
Conteúdo escrito pelo criador de conteúdos Gonçalo Morgado
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