Um concerto considerado poesia aos sentidos, escreve-nos notas de rodapé que importam ser cutucadas.

Entramos na rotina, os trabalhos chamam-nos, vemos as mesmas pessoas todos os dias, passam nos mesmos lugares e às mesmas horas. O afã não é misericordioso com quem é coevo deste século.
No trânsito, os sinais que ora vestem o verde, ora o vermelho, fazem circular uma multidão que se quer fazer chegar ao ponto de partir para algures, ou tantas vezes, nenhures. Leva-nos também este carreiro de trabalhadores automatizados ao mesmo destino numa sexta-feira à noite, que em nada se assemelha às antecedentes e muito provavelmente se repetirão nas vindouras, de descidas e subidas a tempos apressados e assíncronos.

As portas do Coliseu dos Recreios abrem-se informando quem lá chega que o que se irá assistir não é da sua responsabilidade. Pois bem, sobre o piano deitado no palco de uma floresta despida de folhas, ouve-se o canto de pássaros e gotas de água meigas que anunciam a chegada das estações caducas. Aparece, com a calma e suavidade necessária, o maestro que nos tocaria todas as estações aos sentidos, na floresta que nos invadiu.
O bando de pássaros presentes nesta introdução outonal tinha a missão de se espalhar pelos espaços vazios do Coliseu para nos fazerem chegar também o cálido e sumarento Verão, a resplandecente e criadora Primavera e o suave e contemplativo Inverno.

Em minutos largos de concerto, correram-nos as estações do ano todas pelos olhos dentro, pela escuta que as agarra e agradece cada melodia, cada cheiro evocado de memórias do que é próprio da sua época, e o paladar que parece estar na ponta da língua a fazer crescer água.
O toque fica a cargo do abraço à natureza que Ludovico nos induz quando faz o elogio à mesma. As notas que lhe saem das mãos indicam, assertivamente, que paremos e escutemos. A Natureza é o maior ensinamento, assim estejamos disponíveis para escutá-la. Na vida não se precisa de muito, nem tão-pouco daqueles circuitos apressados de tempos nada justos de olhares enfiados no chão. As melodias de Ludovico resgatam certezas enevoadas de onde vimos e aonde pertencemos, louvando a Natureza traduzida em notas musicais. A floresta que se criou em cada um de nós numa sexta-feira já distante de preocupações fúteis, graças ao músico-pintor de natureza viva, recorda-nos da beleza e da felicidade que esta nos traz, permitindo-nos ser conscientes do que temos vindo a perder para este novo mundo. Na senda desta redescoberta, (re)abrem-se portas de percepção para a necessidade da escuta do silêncio, da contemplação, da transcendência e comunhão com a mãe de todos nós.

Ludovico Einaudi © Raquel Folião
Ludovico Einaudi © Raquel Folião


No Outono tocado por melodias de maturação e magnificência, assistimos à importância do respeito pelo tempo e ciclos que se findam.
O observador naturalista começa ali, perante Einaudi e um Outono consciente de tempos, a retreinar o cultivo da mente como um poeta.
À semelhança do Homem, assistimos neste Outono a mudança de tons de folhagem que, quando com olhos-poema, sabemos estar perante a beleza de ciclos findados a tempo certo, sem morte prematura ou serodiamente.
O Inverno bate à porta com as sombras menores como alerta para desacelerarmos o passo na tentativa de as apanhar. É tempo de reflexão e admiração. O vento, as chuvas e as árvores saciam-se vontades mutuamente. As chuvas invernais abrem espelhos de água horizontais para que na pressa dos dias e de olhos voltados para baixo, não nos escape a oportunidade de olhar nuvens brancas, ali deitadas num chão reflexo de céu. As palavras saem, tantas vezes brancas, porém quentes de foguinhos que internamente criamos. O vento sopra esses mesmos fogos internos para acender auroras que nos guardam os segredos bem guardados de noites longas.
A Primavera de Einuadi é-nos trazida pelo canto de andorinhas que desenham nomes no céu enquanto executam danças aleatórias. As notas que saem das teclas vestem-se de tons primaveris que à semelhança do vento sazonal se torna mais meigo e espaçado afagando o verde que agora renasce. As gotas da chuva são toques de dedos leves que batem na vidraça da janela a convidar que sejamos lama. É tempo de apreciar o lugar do nascimento. A Primavera fausta anunciante de abundância vital. O ciclo que recomeça.
O vivo e sumarento Verão murmura-nos ao ouvido a necessidade de nos alongarmos como as sombras que nos crescem nos pés. As ondas do mar trazem beijos ao areal enquanto este aguarda quente e imóvel. A onda vai e volta para ganhar de novo impulso de esperanças. Ganha também o Homem a esperança de ver o tempo renovar-se e ter assim um lugar para ficar e sentir. A noite é um suspiro que não se demora para que a aurora rompa com ganas a estação que estende os dias de encantamento.
Um concerto considerado poesia aos sentidos, escreve-nos notas de rodapé que importam ser cutucadas. Ludovico fala-nos através de notas musicais perceptíveis que, sendo sons, são portanto, um lugar, um tempo para estar, para ver, para mudar, para amar. Tempo puro, foi o que nos segredou nesta sexta-feira transcendente.

Ludovico Einaudi é para lá de talento musical. É a relembrança de que o paraíso é o lugar que temos vindo a evitar pela pressa que nos desloca as pernas diariamente e afasta o olhar da contemplação.
Parcas palavras neste espectáculo deram lugar às mãos que inúmeras vezes se uniram em agradecimento e encostaram-se ao peito de Ludovico para que nos assegurasse de onde lhe sai a poesia da sua música.

Ludovico Einaudi © Raquel Folião
Ludovico Einaudi © Raquel Folião

Conteúdo escrito pela criadora de conteúdos Raquel Folião

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