A redescoberta da música, pelos ouvidos do meu filho, num regresso à minha própria juventude, feita de rock, eletrónica, concertos, CD’s e memórias de um passado analógico em decadência, que procuro, talvez em vão, resgatar.
Foi a 6 de Julho de 2018 que o meu filho ouviu o seu primeiro concerto.
Digo ouviu porque ainda estava na barriga da mãe. Mas pelos vistos existem estudos, não faço ideia quais, que garantem que os fetos começam a ouvir sons por volta da 12ª semana de gestação, que era a idade que aquele belo Ser tinha.
A estreia aconteceu nos Aliados, foi à pala e serviu de warm-up para o NOS Primavera Sound daquele ano, que começava no dia seguinte.
Estava lá quase toda a minha entourage festeira. Duas – em alguns casos três – décadas de festa, amizade e amor. Por esta ordem. E se eu já me sentia pai, eles estavam a 28 semanas de serem tios. Só que ainda não sabiam.
Em cima do palco, um dos DJs da minha vida: Fatboy Slim. Não é o melhor, não é o mais habilidoso ou o mais vanguardista, mas é um one-man show e deu-me algumas das melhores noites da minha vida. Mereceu o lugar no meu coração.
Recordo-me daquela noite como de poucas. E não foi por estar totalmente sóbrio.
Mas porque aquela noite marcou o fim de uma era e o início de outra.
Pré-Reforma?
Não foi uma daquelas noites de loucura, em que jantei vinho, fui para a rua beber cerveja, acabei numa discoteca sem saber bem como e, quando dei por ela, estava no after no Maré.
Nada disso.
Foi uma noite tranquila, como passaram a ser quase todas, porque a Fábia estava grávida e a responsabilidade, essa imbecil, impediu-me de chegar à segunda cerveja.
Mas foi memorável, pela festa, pela companhia e pelo nosso little secret, que tornava tudo mais entusiasmante.
Ninguém sabia nem desconfiava dos cochichos. Andávamos naquilo há quase 20 anos.
Foi também a primeira noite em que percebi que a minha vida tinha mudado. Dezoito anos depois da primeira rave, caiu-me a ficha.
Não pousei as All-Star de guerra naquele dia, mas contam-se pelos dedos das mãos as vezes que regressei ao teatro das operações festeiras.
Sem ressentimentos. Foi bom enquanto durou. Não ficou nada por fazer.
Redescobrir a música pelos ouvidos do meu filho
Anos depois, já com a pessoa mais importante da minha vida como rei e senhor das caixas de CDs que me acompanham para todo o lado – sim, sou um australopiteco analógico não convertido aos Spotifys da vida, com orgulho – foi-me feito o seguinte pedido:
– “Papá, põe este do senhor gordo!“
O “senhor gordo” é o indivíduo que surge na capa de “You’ve Come a Long Way, Baby” (1998), o segundo álbum de estúdio de Fatboy Slim. Que nos perdoe Nossa Senhora do Wokismo, mas o Eduardo não tem filtros nem sabe ler. Tem que se expressar de alguma forma.
Comprei o álbum numa pequena loja de música no Porto, há muito encerrada, cujo nome não me recordo, mas onde ia muitas vezes. Talvez na saudosa Valentim de Carvalho, não sei.
E comprei-o porque tinha que ser.
Porque o tema “The Rockafeller Skank” tinha acabado de rebentar em todo o lado, mas não havia maneira de passar nas sempre conservadoras rádios portuguesas, de onde ia gravando alguns temas em K7s. E foram 2 contos muito bem gastos.
O álbum inclui outros êxitos, que resistiram actuais até aos dias de hoje, como “Gangster Tripping“, “Praise You“, e, claro, a preferida do meu Eduardo: “Right Here, Right Now“. Aqui e agora, que no fundo é o mantra que tomou conta de mim desde que ele nasceu.
O rapaz engraçou logo com o primeiro tema do álbum. E as crianças, quando engraçam com uma música, querem-na em loop.
Lá está: aqui e agora.
Over and over again.
Também eu teria ficado a ouvi-lo em loop na Herdade da Casa Branca, naquela noite quente de 4 de Agosto de 2005, na frescura dos meus 21 anos acabados de fazer. Mas a sensação que tenho é que não durou mais do que 10 minutos. Como tudo o que é bom na vida.
O melhor, esse, estava guardado para o dia em que viu pela primeira vez o videoclip – ainda se diz “videoclip”? – da música.
Uma espécie de evolução das espécies, condensada em 3 minutos e 48 segundos, que começa na célula primordial e termina num Homo sapiens cansado e algo decadente. O tal “senhor gordo”.
E logo surgiu uma cascata de perguntas, tão rápidas que julgo que não eram sequer para responder:
– “Que animal é este?“
– “E este?“
– “E este?“
– “E aquela planta, é uma árvore?“
– “Uma flor?“
– “O peixe saiu da água?“
– “O lagarto ficou macaco?“
– “O macaco tem uma roupa de pêlo?“
– “O senhor ficou gordo assim?“
Os olhos dele brilham e a expressão é de insaciável entusiasmo.
A música tem nele um efeito contagiante.
Faz-me lembrar outra criança que conheci em tempos. Uma criança que renasceu a 11 de Janeiro de 2019, e que de há um par de anos para cá redescobre a música pelos ouvidos do seu filho:
– “Ó pai!“
– “Sim, meu amor?“
– “Porque é que o senhor gordo era um peixe, e depois um macaco e agora é um senhor?“
É a evolução, puto!
Um dia, quando fores crescido, o Eddie Vedder explica-te.
E eu espero estar lá contigo e com a tua mãe, para ouvir a explicação que na verdade até já a ouviste, no conforto do ventre materno, mas é possível que não te lembres.
Ao contrário do teu pai, nunca foste muito à bola com o grunge. Lá chegaremos.
Até lá, vamos ouvindo e vamos vendo, que eu também só descobri que os Beatles eram os maiores depois dos 30. Há um tempo para tudo, sobretudo para o que é intemporal.
Por ora, aproveitemos o aqui e o agora.
Amanhã logo se vê.
Estreamos hoje na Irreversível a rubrica “Music Sounds Better With You“.
O João Mendes foi colaborador da 1ª geração desta Magazine. Nesses tempos escrevia sobre a actualidade política e social do nosso mundo. O seu regresso para esta 2ª geração Irreversível acaba por ser natural, faltava enquadrar a forma. O Mendes é conhecido pelos seus textos, da política à parentalidade. Entre as suas colaborações e projectos destacamos a página “O Pai Já Vai” e as penadas para o “Aventar“.
Conhecendo a sua paixão pela escrita e pela música, a Irreversível lançou-lhe o desafio de somar essas paixões a outra mais recente, a parentalidade, e juntar tudo em formato de rubrica.