Na mochila, pouco mais trazia do que água, máquina fotográfica e um caderno sedento de desabafos por escrever, meus, desta jornada, e de quem o quisesse encher comigo.
É precisa uma aldeia para criar uma criança, lembra o adágio.
No caso de Fontes, é inevitável a aldeia atender à vontade de erguer o Nascentes.
Plenos meses de calor, Junho a findar e Julho a estrear-se, recebem música, tradição, saberes, expressão pelas artes, gastronomia e a vontade de abrir as portas da casa. Ainda o calor vinha longe e já as estradas de Fontes eram batidas pelos pés de quem fez muitos metros para alçar o festival Nascentes. Tão necessário quanto conhecer este festival, é irrevogável conhecer-lhes as raízes.
As que começaram noutros Verões, Primaveras, Outonos e Invernos.
Chegada a Fontes, à boleia de um dispositivo dos tempos actuais, o gps, deixei-me descer a serra acentuada de curvas e contra-curvas para, no sopé da mesma, encontrar aquilo que viria a ser um sonho de dias que perderam a noção do tempo e tornaram-se a chave da memória.
O silêncio de aldeia enchia a hora que passava pouco depois do almoço, e por isso ainda as casas acolhiam os seus filhos. Procurei um lugar para tomar algo na tentativa de conhecer quem antes de construir o Nascentes, ergue a história de Fontes. Na mochila, pouco mais trazia do que água, máquina fotográfica e um caderno sedento de desabafos por escrever, os meus, desta jornada, e de quem o quisesse encher comigo.
Indicado o caminho para a Associação de Fontes, por dois jovens energicamente satisfeitos de carregarem materiais de última hora, deixei o primeiro sorriso sair e ficar por lá. A hora era quente e o trabalho fazia-se à demanda do sol, e enquanto secavam o suor que lhes escorria, o sorriso desenhou-se-lhes nas faces, por poderem ajudar alguém. Confessou um deles que iria dar-me a conhecer um atalho, e quase que o fez em sussurro, para que não fosse muito utilizado doravante.
Assim me comprometi a guardar este segredo e atravessei o caminho, aquele que não vos posso dar directrizes.
Chegando à Associação, sacio a minha sede com um refresco e reparo numa mesa próxima que já acolhia dois filhos da terra, que claramente, já teriam abandonado a mesa do almoço. Nesta mesa conversavam entre si, com risos pouco tímidos, coçares de cabeça que indicam a dúvida ou discordância que quer ser meiga, e fios leves de silêncio que confirmam à-vontade com as pausas.
Numa das pausas, dão pela minha presença e são os olhos deles que sorriem para mim enquanto lhes sai rapidamente a educada e quase inevitável pergunta:
“A menina não se quer sentar aqui connosco? Quer tomar alguma coisa? Estamos só aqui à conversa, mas pode vir para aqui.” Parecia haver concordância entre os dois e eu, sem dúvida alguma, anuí.
Torcemos os sorrisos para o mesmo lado.
O senhor José Rola, doravante, Zé Rola encantou-se com a possibilidade de alguém querer ouvir histórias de Fontes. Disse, prontamente, que não era nascido ali, mas de uma terra perto, Reixida.
As rugas não faziam esquecer a vida que já lhe passara, à excepção dos olhos que escondiam a idade, já que eram da cor do mar, transbordavam alegria e não eram nada vencidos. Muito mundo visto, mas outro tanto para ver.
Encantou-se por um moça, na sua juventude, ela sim de Fontes, o que fez com que as viagens entre Reixida e esta fossem cada vez mais amiúde. Falou desses tempos com um brilhozinho nos olhos, que também se reflectiram no mar dos meus. Contava que quem vinha de fora, nem sempre era bem-vindo em Fontes, especialmente quando para cortejar as filhas da terra. Assim narrou uma peripécia que acabou com a sua bicicleta jovem, pendurada na árvore, por se ter atrevido a ir a Fontes cortejar. Relata a história, enquanto lança risos ao mesmo tempo que vai coçando a cabeça, meio encabulado da situação da sua mocidade.
Vista e ouvida a minha vontade de lhe escutar histórias e saber um pouco mais de Fontes, prontificou-se a guiar-me pelos caminhos da aldeia, levantando-se e, amavelmente, perguntando:
“A menina importa-se que a acompanhe? Faça as perguntas que quiser.“
Nos meus olhos não cabia mais mundo naquele momento, senão Fontes. Já os azuis do Zé Rola eram adoráveis, confiantes no amor que o prendia a Fontes e ardidos do sol, de quem trabalhou muito e ainda presta mãos ao que for necessário. Sobretudo se nelas for o coração que mete em tudo o que faz para ajudar. Subimos até ao palco Nascentes, onde nasce, efectivamente, o Lis e com fulgor na voz e nas mãos explicava que no Inverno a nascente não está seca como naquele momento, pois a terra chorava por ali abaixo, assim o disse. Eu não assisti ao choro da terra a prosperar o cultivo futuro, mas pude ver pelos olhos do Zé Rola como o Inverno verte lágrimas grossas desfiladeiro abaixo.
Os seus olhos, de vez em quando, lacrimejavam e lá levava a mão e um lenço para lhe secar a chuva, e aí depois de os abrir, parecia regressado de muito longe, e lá sorria.
Os caminhos da aldeia são curtos, mas naquela tarde fizeram-se compridos o suficiente para escutarem todas as histórias do Zé Rola. Subidas íngremes testemunharam a história da filha Raquel, de quem fala com tanta doçura como se espremesse um favo de mel. Realçou várias vezes que o que gostava mesmo era de ver pessoas, estar com elas, afirmando a sabedoria máxima de vida: “Nós precisamos de socializar, precisamos de estar uns com os outros. Não concorda?“
Não poderia estar mais de acordo, acreditando que naquele momento eu própria seria uma peça cerzida na sua manta de retalhos e o Zé Rola na minha. As conversas foram surgindo, intervaladas com relevância, para apontar as casas que também elas tinham guardadas as histórias de quem lá vivia ou viveu outrora.
Numa das primeiras descidas, abrandou os passos dos pés que se esqueceram do solo quente que testemunharam uma mão-cheia de contos.
Disse estarmos perante a casa de um grande amigo, o Joaquim Simões e a sua esposa Lucília.
Convidaram-nos a entrar e assim o fizemos pela porta grande da garagem que nos engoliu para mais um deleite visual e de escuta.
Num acto de conversa que se quer como as cerejas, nem demos por ela começar, de deliciosa que foi.
Da garagem que serve uma mesa de almoço tardio na aragem breve que deixa correr, passámos para o corredor que leva à cozinha.
A minha marcha é recta e inabalável para o aperitivo com que me deparei, uma mesa com todas as edições do “jornal das cortes“. Este compacto de notícias de Fontes está exposto delicadamente sobre uma mesa comprida, devidamente ordenado e por detrás deles surge o sorriso orgulhoso que enche a cozinha, o do Joaquim. Sem falhar à chamada surge também o da sua esposa, Lucília.
Enchi-me de silêncio de ouro para que não me faltasse escuta sobre o império informativo que esta cozinha guardava. Joaquim Simões, que da mesma maneira que tão depressa abre as portas da sua casa, também rasga um sorriso quando narra que todos os dias a sua motorizada dá-lhe boleia a todas as casas de Fontes, onde as caixas de correio o esperam de boca aberta para mastigar as notícias da comunidade.
Lucília Simões, carinhosamente apelidada de Cilinha guarda trunfos na manga quando nos convida a ouvir que nesta marcha de edificar o Nascentes, contribuiu para o Museu do Comum com os detalhes que não podiam faltar, assim como as linhas que quase invisivelmente juntam retalhos de uma manta unida. Peças de detalhe suturadas no coração de Fontes, por pedaços dos seus habitantes pelo que têm em comum, um coração que não se esquece de manter gestos e palavras quentes à entrada da aldeia.
Conta ainda que pelas suas mãos devotas ao Nascentes, passaram dias e noites, que testemunham as 200 toalhas de banho que passou na máquina de costura para que estivessem à venda no festival. Diz, em tom dócil e brioso, que foi uma tarefa de responsabilidade e de grande lisonja.
Aponta assim o mentor que pensou com o coração e amou com o cérebro o nascimento do Nascentes e de todos os filhos da terra que se viram renascer nesta caminhada.
Gui Garrido, não só é o cérebro e o coração de um festival que vasculha e encontra em cada um de nós, a gentileza, a empatia e a generosidade, como lhe serve de pernas e braços.
Destacável figura que, a quem o bem observa, lhe percebe pernas compridas para que percorra metros incalculáveis na senda de abrir caminhos ao mundo arrojado, inquieto e em constante provocação aos sentidos. Nos seus olhos desenham-se esboços presentes e futuros de meticulosas moléculas que fazem e farão estremecer veias carregadas de vida a quem assiste em primeira mão a projecção dos seus olhos utópicos. Os seus braços são igualmente compridos e robustos para conter os abraços intermináveis, daqueles que nem sabemos precisar e não nos deixam cair, mas também são os que manuseiam as ferramentas úteis a cada ofício necessário para manter um amor vivo.
A voz treme-lhe quando fala de Fontes e da beleza verde que veste a aldeia, e aí ficamos a saber que de dentro de um corpo fabricante de utopias, ocorrem abalos sísmicos, tal não é o fervor de um coração que resgata em nós valores adormecidos.
A equipa que o acompanha conhece-lhe os passos, mas também os compassos do coração, já que se encontram em consonância.
Numa tarde quente, a esplanada da Associação pede que se sirva algo fresco a um par de primos que se encontra em conversa.
Uma vez mais fui convidada àquela sombra em específico para me refrescar e continuar a encher o meu caderno de palavras cheias de mundos.
Manuel Ribeiro, nascido e criado em Fontes, convida-me a entrar nos seus olhos para conhecer a aldeia aos tempos em que – conta o próprio – o seu jardim de infância foi ali, de uma ponta à outra de Fontes, até onde se pode ver verde.
Calculei de imediato o tamanho da liberdade, a capacidade de desenvoltura e a criatividade fervilhante de crianças felizardas por ali crescerem.
Vindo de uma família de seis irmãos, afirma-se determinado quando decidiu pegar na bicicleta, que era também confidente e amiga de todas as horas, e trilhar caminho académico. O trabalho da terra era essencial mas também exaustivo e por isso aliou o estudo de professor de 1°ciclo a este ofício. Saído de uma infância com um espaço de escola interminável de liberdade, seguiu o ciclo de proporcionar aprendizagens a crianças nos moldes de pensamento livre.
Hoje em dia, afastado das escolas como professor, volta a mostrar relutância ao sedentarismo e conformismo e dedica-se às notas finas de um piano.
Relata que a qualidade de vida vive-se ali no verde de Fontes, mas que nem sempre foi fácil fazer jus às dificuldades da vida. No entanto, para quem escuta as dificuldades que não conhece em primeira mão, pensa tratar-se de constantes quedas, quando na realidade se tratava de preparação de voo.
José Ferreira, seu primo, que estava sentado ao seu lado, escutou tão atento as suas histórias como se fosse a primeira vez.
Conta com uma vida estrada fora, como um caminhante destemido para os desvios que surgem inesperadamente. Da mesma forma que se mune de ferramentas para desbravar mato, conhece e reconhece detalhes de amor pelo seu caminho. Nascido em Fontes, partiu com ano de vida para Angola, onde permaneceu até à juventude. Por lá estudou e por lá entregou o seu coração para que a sua amada o carreguesse consigo e vice-versa.
Se muitos de nós assistem em vida ao divórcio da alma e do corpo e a razão do coração, encontramos no Zé o casamento feliz com um amor que veio de longe e que trouxe para perto, não permitindo que a emoção e a razão conhecessem a distância.
Fez crescer uma casa para que não coubesse só ele. Lá abrigou o seu amor Irene e deixaram que a extensão deles lhes fizesse crescer uma família que ainda hoje não pára de crescer, assim como o amor com que recebem quem chega a Fontes.
Na aldeia de Fontes fala-se uma linguagem específica que não separa a razão da emoção. Fala-se portanto a verdade do coração.
O passado tem tanto a dizer ao presente quanto este tem a dever ao futuro. O passado traz a história que não adormece e que cutuca o presente para que este siga o seu tempo. O nosso sistema cardiorrespiratório enche-se de memórias que permitem olear o motor do futuro.
Recordar a história, as histórias de cada um, é abrir o peito e revisitar o coração e vê-lo de boa saúde.
Roguemos que nunca nos afecte a mudez, para que o passado não morra, nem a surdez para que a escuta seja do presente.
Em Fontes, rapidamente se aprende, que é naquilo que somos comuns que está a chave da humanidade.
Muitas outras histórias construíram o Nascentes e tantas outras dão justiça a Fontes, aqui anónimas, mas todas elas uma peça de retalho inevitável na manta que se deixa cair das janelas do Museu que perpetua a sua vida.
É tempo de nascer | Nascentes 2023 | Parte 1/3 | Por Raquel Folião
“É o rio que nos chama.” | Nascentes 2023 | Parte 2/3 | Por Raquel Folião
Conteúdo escrito pela criadora de conteúdos Raquel Folião