Depois do que vi e ouvi percebi que ando a comer sono pesado e que às vezes me esqueço de sair da minha zona de conforto sonoro.

Viagem rápida da periferia do Porto até São João da Madeira. Vinte e cinco minutos que não deixaram espaço para um mergulho minimamente consistente na playlist a rodar no sistema de som do carro… estacionamento quase à porta e um cigarro rápido antes de tratar das formalidades para o acesso ao espaço do Oliva Creative Factory. QR code lido, credenciais presas na presilha das calças, seis lanços de escadas subidos ainda à procura do pulso da coisa. E foi aqui que o tempo desacelerou pela primeira vez…

© Joana Sousa – Shootsounds / Party. Sleep.Repeat.


Numa das salas de acesso ao Palco CAO fui surpreendido por uma estrutura que servia de apoio a não mais do que uma dúzia de peças cerâmicas facilitadoras de uma viagem imediata a toda uma série de memórias de infância e adolescência. Cresci rodeado de blocos de barro, muflas e tratados de alquimia sobre vidrados e tempos de cozedura. Processos de metamorfose que transformavam objectos toscos e de cores desmaiadas em explosões de cor e brilho depois de expostos a temperaturas demoníacas. Convencido de que estava a ser embalado pela reconstrução de uns quantos fragmentos de memória, percebi à medida que me afastava, estar sim a responder ao chamamento da voz maior de Arianna Casellas, serenamente marcada pela percussão de Kauê Gindri… dois elementos distintos em órbita um do outro. Estava explicada a viagem ao passado.

Arianna Casellas y Kauê © Joana Sousa – Shootsounds / Party. Sleep.Repeat.


Lavada a alma e com a promessa de sonoridades ligadas à corrente daí a poucos minutos, começou a procura pelo primeiro copo de cerveja da tarde… a demanda revelou-se infrutífera e resolveu-se com duas garrafas de água de meio litro compradas numa bomba de gasolina ali mesmo ao lado, mas resolvida a secura do corpo, a da alma parecia caminhar no sentido diametralmente oposto. Nova escalada pelos tais seis lanços de escadas, desta feita rumo a um terraço amplo e ainda pouco povoado. Um cigarro, duas de letra, outro cigarro e o espaço começa subitamente a encolher. Sente-se alguma tensão no ar. Percebe-se pela migração em massa do fundo do terraço para frente do palco que a coisa é séria. Os MДQUIИД só tinham um fósforo e ficou claro que sabiam como usá-lo sem o deixar apagar… lançaram-no com precisão para a plateia e a coisa, naturalmente pegou fogo. Enfrentaram o destino com o peito aberto, olhos nos olhos, de bateria, guitarra e baixo em riste e deram-lhe uma das mais consistentes tareias sónicas que tive o prazer de presenciar nos últimos tempos. Entrei conhecedor distraído e saí fã convertido, muito por responsabilidade das malhas do baixo do Tomás, sem desprimor algum para os restantes elementos da banda. Entretanto já temos encontro marcado num futuro bem próximo…


Antes que as nódoas negras que os MДQUIИД me deixaram nos tímpanos tivessem sequer tempo para começar a amarelar, agarrei o meu eterno Sputnik pela mão e lá retomámos a peregrinação pelo tal copo de cerveja. E sim, fomos bem sucedidos… no meio da pequena multidão que se começava a formar em redor do único bar situado na praça da alimentação surgem dois amigos que horas mais tarde iriam marcar de um modo surpreendente a edição de 2023 do Party. Sleep. Repeat., mas já lá vamos. Depois dos beijos, dos abraços e do conforto de estar rodeado de mais duas almas que ouvem a mesma canção, surge uma terceira e o tempo voltou a desacelerar, facto que nos fez perder a quase totalidade do concerto do Gala Drop.

 Terminado mais um concerto em que a nota artística foi para o baixista, fomos invadidos pela ideia peregrina de que iriamos retemperar o corpo para tudo aquilo que ainda estávamos para ver e ouvir. Não podíamos estar mais enganados…

Postos os afectos em dia e reenchidos os copos de cerveja, comemos qualquer coisa e dispersámos a
dois para o Palco Alameda. Os Kings Of The Beach eram a próxima banda na calha e em menos de
trinta segundos percebeu-se que provavelmente aquele iria ser o concerto mais honesto, mais
descomplexado, mais imediato, mais desvairado, mais enérgico, mais bem-disposto e mais desgovernado da noite. Comunicadores por excelência, trabalharam sem grande esforço uma pequena legião de fãs que nitidamente marcou presença no festival por sua causa e tiraram o melhor dos partidos do facto de terem sido acolhidos com carinho, devolvendo-o com um concerto implacável e irrepreensível. Deu para rir, cantar em plenos pulmões, saltar, dançar e tudo a que se tem direito quando estão três tipos de coração grande, cheios de boa onda a partir e a dar tudo em cima do palco. Terminado mais um concerto em que a nota artística foi para o baixista, fomos invadidos pela ideia peregrina de que iriamos retemperar o corpo para tudo aquilo que ainda estávamos para ver e ouvir. Não podíamos estar mais enganados…

Kings Of The Beach © Joana Sousa – Shootsounds / Party. Sleep.Repeat.


Enquanto apostávamos mais umas quantas fichas em dois copos de meio litro de cerveja reencontrámos os amigos de quem nos tínhamos momentaneamente separado antes dos Kings Of The Beach e estava criado o ajuntamento perfeito para o concerto dos Yakuza.

(continua na página 2)

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