Abriu recentemente um concurso para o cargo de Coordenador do Serviço Educativo do Teatro Nacional São João (TNSJ), no Porto. Sem dúvida, um cargo de elevada responsabilidade, que exige experiência e competências profissionais específicas, sensibilidade artística, capacidade pedagógica e visão estratégica para o diálogo entre arte e comunidade. Um cargo que deve ser visto, em si mesmo (complementarmente ao da Direção Artística), como um símbolo inviolável da valorização da cultura e da educação enquanto instrumentos de serviço público e de enriquecimento da sociedade.

Um Coordenador de um Serviço Educativo de um teatro – seja ele qual for – representa o coração pedagógico e de mediação de uma instituição artística. Em colaboração com o Diretor Artístico, é quem pensa as pontes entre o palco e a escola, quem proporciona a inclusão pela arte, quem define a estratégia na relação criativa entre o artista e as múltiplas comunidades, quem ajuda a formar novos públicos, e quem estimula o pensamento crítico e a criatividade de comunidades esquecidas das práticas culturais e pedagógicas. Exige conhecimento, planeamento, empatia, resiliência e criatividade. E requer um alto grau de compromisso a tempo inteiro e um trabalho de grande desgaste. É, portanto, uma missão profissional de especial relevância, responsabilidade pública e tecnicamente especializado, dentro da dinâmica de uma estrutura cultural.

Ora, as condições contratuais deste recrutamento do TNSJ prevê para este cargo 35 horas semanais + disponibilidade de trabalho aos sábados, domingos e feriados (sem referência a pagamento de horas extras). O contrato exige formação superior e experiência profissional mínima de 5 anos na área de serviço educativo. Até aqui tudo normal. Mas o valor salarial proposto para este cargo de coordenador – 1797,28€ brutos, cerca de 1263€ líquidos mensais – raia o indigno (393€ acima do salário mínimo nacional). Não o digo por capricho retórico, mas por princípio ético.
Isto porque não se constrói o futuro de um país culto e desenvolvido a pagar salários de sobrevivência a profissionais especializados. Um coordenador deste serviço deveria, em coerência com as suas responsabilidades e considerando a escala nacional da instituição, auferir um salário bem superior porque, na verdade, acaba por ser um convite à frustração e à fuga de talentos – o que depois se traduz na falta de recursos humanos qualificados e compromete a continuidade e maturidade das equipas culturais.

Um Teatro Nacional deveria ser uma referência não apenas cultural e estética, mas ética: deveria ser um exemplo de defesa da dignidade do trabalhador de cultura para o resto do país, porque tem recursos financeiros e estatutários que quase mais nenhuma estrutura cultural nacional tem. E porque tem uma missão cultural de dimensão nacional, e não apenas local ou periférica. No entanto, ao propor valores salariais baixos como estes, alinha-se com uma tendência estrutural que atravessa transversalmente o setor cultural português: a desvalorização crónica dos profissionais que o sustentam. As funções em cargos de programação, técnicas e educativas em equipamentos culturais por todo o país continuam a ser tratadas como uma espécie de “missão honrosa”, uma vocação quase espiritual e que se deve exercer “por amor à arte” por um salário pouco mais do que simbólico para sobreviver.

Mas o amor à arte não paga rendas ou alimentação, nem garante estabilidade pessoal, nem sustenta equipas multidisciplinares de um teatro com projetos de grande fôlego, qualidade e de longa duração. Porque a precariedade (salarial ou de condições de trabalho) mina e destrói essa capacidade de fôlego (como se tem visto em várias greves de trabalhadores da cultura que aconteceram recentemente).
Com esta agravante: no contexto como o do Porto, com o custo de vida a crescer e as condições habitacionais a um nível estratosférico, oferecer 1260€ líquidos por mês a um profissional especializado na educação e cultura no contexto de um Teatro Nacional, é um retrato cruel e injusto da forma como o Estado encara o trabalho cultural: com palavras de louvor, em teoria, e gestos de desvalorização, na prática. Ninguém com perfil, competências técnicas e profissionais nesta área que viva fora do Porto poderá aceitar este cargo por estas condições remuneratórias sem fins-de-semana livres, precárias e completamente instáveis. E isto dá muito que pensar no que diz respeito à urgente e necessária capacitação e estabilidade dos profissionais dos teatros municipais ou nacionais.

Se queremos uma política cultural séria e comprometida com valores sólidos, que consiga construir alicerces para o futuro de uma geração e de um país, temos de começar por aqui: pela dignidade dos profissionais da cultura, seja em que área técnica ou profissional for. Sem esta dimensão estratégica de fundo de valorização e investimento em profissionais qualificados e motivados, toda a retórica política sobre “formação de públicos”, “democratização e acesso à cultura” ou “serviço público“, será apenas isso – mera retórica de resultados iníquos: como atores a representar num teatro vazio de espetadores.
Defender a dignidade em contexto laboral das equipas da cultura é o primeiro ato de criação de uma verdadeira política cultural, a nível local, regional e nacional. É o valor supremo, o farol para a qualificação de tudo o resto em volta, a garantia de base para atribuir valor acrescentado à missão de um teatro e às suas equipas.

PS: O papel dos sindicados dos trabalhadores da cultura têm uma missão crucial na denúncia da precariedade e na defesa dos direitos dos trabalhadores da cultura nas instituições culturais deste país.

Texto de Victor Afonso

*imagem de capa gerada por IA