O primeiro acto do programa de sexta-feira do Rodellus foi um convite à elevação. Não veio numa salva de prata nem ofereceu um impermeável da moda. E quê?

O GPS voltou a puxar dos galões da sua pontualidade britânica e chegámos a Ruílhe à hora prevista. Nem um minuto a mais, nem um segundo a menos. O relógio marcava 21:00h. Estava a chover. Ainda dentro do carro consultei as previsões meteorológicas para as próximas horas e a informação devolvida foi a ausência de precipitação. Enquanto os pingos de chuva escorriam copiosos pára-brisas abaixo encolhi os ombros e sorri perante a evidência inegável de a app de meteorologia do meu telemóvel ser uma espécie de oráculo falido e sem a mínima vocação para a função que desempenha.

Optámos por deixar o guarda-chuva no carro e fomos à nossa vida. Depois de uma caminhada por um carreiro mal iluminado com aquele feeling de que o lobo mau podia pintar a qualquer momento para nos sodomizar a inocência há muito sodomizada, fez-se luz. Estávamos no recinto do Rodellus. Não tínhamos as credenciais e as bilheteiras eram do outro lado… um problema resolvido de forma expedita pela figura de autoridade que nos barrou a entrada. Poucos minutos e três pontos de situação tranquilizadores depois estamos a ser conduzidos ao desatar do nó burocrático. Oficializada a permissão para circularmos sem constrangimentos fomos jantar. À mesa reencontrámos os dois fotógrafos mais fofinhos de sempre em amena cavaqueira com o Sr. Irreversível. A recepção foi sonora, os abraços apertados, os beijos encharcados. Estava dado o pontapé de saída da edição de 2023 do Rodellus e antes dos primeiros cinco minutos de jogo, um cruzamento tenso e teleguiado para a área refeição deu em golo na forma de um reconfortante e aprimorado prato de bifanas… ao que parece, o segredo da táctica para a dupla jornada gastronómica do fim-de-semana estava assente no talento e na técnica de um quarteto ofensivo com um desempenho demolidor. A Catarina, a Sara, a Mariana e a Dona Céu deram alta cabazada à larica dos convivas, tipo 60 a 0 para o Rodellus… cum caraças!

Staff Cozinha © Pulsar
Staff Cozinha & Gonçalo Morgado © Pulsar


Os Irreversíveis estavam mais uma vez reunidos e prontos para atacar o primeiro concerto da noite. A chuva deu-nos uma brevíssima trégua até à frente do palco. Com a primeira aventura sonora prestes a rebentar ainda tivemos tempo para pedir uma cerveja, trocar duas de letra, resolver formalidades de última hora e acertar detalhes sobre o que estava para acontecer daí a umas horas. Foi neste misto de atribulação e acalmia funcionais que os indignu deram o ar da sua graça para enfrentarem uma pequena multidão novamente fustigada pela chuva que entretanto recomeçara a cair. Houve quem fugisse para se abrigar, houve quem não arredasse pé. Quem não arredou pé viu-se subitamente mergulhado num estado de eutimia e, um a um, foram sendo projectados muitos metros acima do recinto, debaixo do olhar atento e estupefacto de todos os que se acobardaram em busca de um abrigo inexorável. Quando a vida nos dá rock’n’roll à chuva devemos, por definição, desvalorizar a molha para privilegiar a lavagem da alma. Não sentir a respiração de uma banda talhada para estar em palco, não comunicar com ela, não aproveitar todos os segundos da viagem de um foguetão que nos propele rumo a não sei quantas dinâmicas meditativas, não dar a outra face a um estaladão de distorção visceral, tudo isto em detrimento desse tal abrigo inexorável é tão-somente perder um dos concertos de abertura mais deliciosos e estimulantes da temporada. O primeiro acto do programa de sexta-feira do Rodellus foi um convite à elevação. Não veio numa salva de prata nem ofereceu um impermeável da moda. E quê?

indignu © Pulsar
indignu © Pulsar

indignu © Pulsar
indignu © Pulsar


De entranhas leves como tudo e com um peso na gabardine inversamente proporcional, lá decidimos arriscar outro possível encontro com o lobo mau. Fomos ao carro buscar o guarda-chuva. Regressámos sãos e salvos ao recinto para daí a uns minutos sermos levados ao limite da paciência por um tal de Murphy que come pão com manteiga cheia de terra e tem a puta da mania de ditar leis viciadas pelos azares de probabilidades funestas. O episódio é risível, escatológico e tem o seu final feliz em curso. Ainda assim, não vale o esforço de remexer a trampa com um pau. Vai ficar no segredo dos Deuses da fossa a céu contido pelo reservatório de uma das casas de banho do backstage.

A subida de dUAS sEMIcOLCHEIAS iNVERTIDAS ao púlpito deu-se num momento de alguma dispersão e acabei por não os apanhar ao primeiro espasmo. Havia mato para desbravar, a catana não estava no armário das ferramentas e o único instrumento minimamente útil à mão de desbastar vegetação era uma tesoura de poda. Consegui finalmente chegar-me à frente para cheirar mais de perto mesmo a tempo do seu segundo espasmo. Não demorei muito para perceber o motivo pelo qual não meu cruzei com o lobo mau no caminho parcamente iluminado que percorri do carro até ao recinto – estava em cima do palco e no bucho tinha muito mais do que a avozinha do Capuchinho Vermelho. Tinha o elenco de todas as histórias para crianças, a fauna de todas as fábulas de Esopo e La Fontaine, as notas de todas as músicas, a agitação de todas as marés atrofiadas do clima, o conteúdo exterior a todas as caixas, a vertigem de todos os sonhadores, a agressividade latente de todos os momentos em que a coisa descamba numa espiral de violência intelectualizada e nada gratuita. E também tinha um saxofonista com pernas até ao plexo solar, um guitarrista metodicamente desgovernado, um baixista de cutelo em riste, um baterista de cérebro musculado e um manipulador de maquinaria sonora preciso como um relógio suíço. Para gaudio de todos os presentes, o bucho do lobo mau não é como Las Vegas e tudo o que acontece lá dentro, sai cá para fora. Nunca na vida imaginei ver tanta gente por metro quadrado com um sorriso de orelha a orelha depois de levar com um banho de refluxo gástrico… foi de uma frescura inesperada!


Depois de um suspiro interminável como que em esforço para controlar as arritmias cardíacas amotinadas dentro do peito fomos à procura dos três quintos Irreversíveis em falta. Encontrámo-los no backstage e por lá ficámos enquanto a próxima banda se preparava para render a guarda… parecia hora de ponta – malta por todo o lado! Músicos, staff, organização, imprensa. As conversas começaram a fluir, a unir pontos, a aproximar experiências, a desconstruir barreiras, a provocar emoções, a fazer sorrir… contagiados pelo dinâmico entra e sai que para ali andava, decidimos voltar a sair para beber outra cerveja e dar mais quinhentas de letra com alguns amigos que fomos encontrando pelo caminho. Amigos de sempre, amigos recentes, fantasmas de festivais passados, desses que respiram o mesmo oxigénio que nós e não fazem coisas de desconfiar. Está-se mesmo a ver onde é que isto vai dar, não está?

A diversidade não é um lugar-comum. É um rasgo de inteligência que dilacera os tendões da ignorância, alimentado pelo lado nutritivo de todas as raízes que compõem a flora deste canteiro à beira-mar plantado.

Se não apanharam à primeira, tentem a próxima saída. Olhos e ouvidos bem abertos que isto de ser adulto requer mentoria para se aprender a ler nas linhas e entrelinhas das palmas das mãos. Prestar atenção não basta. É preciso empenho para se pausar a razão e sucumbir à fragilidade da inocência em contraste com a sabedoria para se fazer uso da esquizofrenia. E tudo isto sem a transformarem numa vulgar fatalidade. O palco do Rodellus acabava de ser invadido pelos Unsafe Space Garden, um ajuntamento de personagens como que arrancadas em modo subversivo a uma pintura de Hieronymus Bosch, ligadas à corrente e deixadas à sua sorte para semear a construção… passaram-se seis semanas desde o concerto do Basqueiral e arrumado o primeiro impacto desse final de tarde, vê-los em horário nocturno deu outra dimensão à experiência, uma compreensão totalmente distinta do fenómeno. São adultos funcionais de alto rendimento, focados, com um propósito, um espírito de missão, um rumo. Não deixam nada ao acaso. Alcançam a pertinência sem um pingo de esforço e navegam pelas águas turvas dos últimos cinquenta anos de rock’n’roll com uma pinta inimaginável. Saí a duas músicas do final para daí a minutos partilhar um sofá com a Alexandra numa espécie de flash interview pós-concerto. Durante essa conversa espirituosamente acelerada e à medida que o resto da banda se foi aproximando e interagindo percebi-os coesos, solidários, na onda uns dos outros… são uma comandita de seres humanos lindos de morrer. Quando a entrevista acabou, não cabia nem mais um mosquito dentro daquela tenda.

Unsafe Space Garden © Pulsar
Unsafe Space Garden © Pulsar


Isolei-me por breves momentos para um cigarro no meio da escuridão. Precisava de baixar o batimento cardíaco e como que por magia alguém me desencravou uma dose pródiga de whisky num copo de fino mesmo antes de me fundir no breu. Aproveitei mais uma vez a generosidade do universo e deixei-me ir sem reservas.

De volta à luz, o último concerto da noite estava a minutos de começar… um dos temas de conversa ao jantar fora a outra flash interview do dia. A Irreversível tinha estado à conversa com o Scúru Fitchádu durante a tarde e a primeira abordagem ao assunto foi acompanhada de um olhar com tanto de esgazeado como de enternecido por quem a tinha conduzido e registado. Umas horas depois, entre as actuações de dUAS sEMIcOLCHEIAS iNVERTIDAS e de Unsafe Space Garden chamaram-me ao longe porque tinham alguém para me apresentar. E sem estar a contar, dei de caras com um olhar meigo, sorridente e acolhedor. “Scúru, este é o meu Gonçalo Morgado”, disse o Sr. Irreversível. Seguiu-se um aperto de mão e um abraço. A coisa ficou por ali por causa da tal hora de ponta que referi há pouco e foi cada um à sua vida. Durante as duas músicas de Unsafe Space Garden que perdi para me preparar para a entrevista com a Alexandra, reencontrámo-nos junto ao sofá onde a coisa iria acontecer e sem dar por ela estava a ser embalado pela doçura de um contador de histórias de voz serena e presença tranquila. Falou sem reservas, olhou-me nos olhos, sorriu e partilhou alguns dos fragmentos do edifício majestoso que é a sua individualidade. Acolheu-me nele e no fim desta cena toda ainda teve a presença de espírito para pousar para uma selfie. Se as duas noites que vivi no backstage do Rodellus fossem transformadas num documentário, o momento em que vi o Scúru Fitchádu entrar em palco antes de me juntar aos “Corajosos do Rodellus” para o seu concerto seria aquele segmento em slow motion para a posteridade… os meus olhos estavam pequeninos e húmidos, e tudo sem ter fumado um único charro.

A mão que agarra a minha há dezasseis anos voltou a agarrá-la para me levar até à frente do palco. Perfeitamente consciente do estado emocional em que me encontrava deixou-me ali e afastou-se uns centímetros. Conseguia sentir a sua presença e a espaços via-a pelo canto do olho. A cena começou a bater tipo, logo. Bateu na anca, bateu nos braços, bateu no peito, bateu na cabeça, bateu no corpo todo, porra! Revolveu a consciência, amplificou a ideia de que somos um país pequeno em tamanho mas com uma diversidade maior, sem a qual ficaríamos com a identidade manca e a definhar num marasmo monocromático exasperante. Para lá do cinzentismo tétrico, bafiento e normalizado, por estes dias com uma expressão assustadoramente em crescendo, há toda uma construção dinâmica que nos engrandece. A diversidade não é um lugar-comum. É um rasgo de inteligência que dilacera os tendões da ignorância, alimentado pelo lado nutritivo de todas as raízes que compõem a flora deste canteiro à beira-mar plantado. Quanto ao jardineiro de serviço antes do cair do pano da primeira noite de festival, ficou clara a consciência que tem da importância do solo que ara. Planta amor para colher cabeças arejadas e corações esclarecidos.

Scúru Fitchádu © Pulsar
Scúru Fitchádu © Pulsar


A febre de sexta-feira à noite prolongou-se por mais umas horas e o djset da Catarina Silva insistia em não deixar o amanhã chegar… mas o advento de um novo dia era inevitável. Durante algumas horas, o tempo quase que parou em Ruílhe. Custou largar o osso, mas teve de ser… sábado era já uma realidade bem luminosa quando caímos na cama.

Rodellus © Pulsar
Rodellus © Pulsar

Rodellus © Pulsar
Rodellus © Pulsar


Conteúdo escrito pelo criador de conteúdos Gonçalo Morgado

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