Os Sereias actuaram no Maus Hábitos no âmbito do Desassossego – Festival Internacional de Vídeodança

O texto a seguir é um ensaio pessoal sobre a experiência de assistir aos “Sereias”, refletindo sobre a sua prática artística, impulsionado pela conjugação dos motes “Desassossego” e “Maus Hábitos”.

Os Sereias não tocam apenas músicas, fazem esquivas. Criam um inventário existencialista. Som. Alvoroço. Sonhos tangíveis e, ao mesmo tempo, realidades em falência. Monólogos que conspiram em conluio com uma lógica insólita.

Há uma sensação de múltiplos planos de percepção, que só existe nos objectos artísticos que recusam linearidade. Cada riff, um corredor. Cada verso, uma porta entreaberta. Cada sequência, um olhar pelo buraco da fechadura. O íntimo e o abstrato. Os concertos transformam-se num arquétipo pessoal. Um espelho que devolve uma qualquer coisa. Um desassossego.

A inquietação não é amarga. É pirética e passional. Um caminho iluminado por luz estroboscópica, sempre prestes a descobrir uma nova galeria de projeções que pode, ou não, existir. A atmosfera, o ambiente, esse desassossego, estão lá. Orgânicos.

Sereias © Sérgio Davide
Sereias © Sérgio Davide

Há bandas que tentam incorporar interdisciplinaridade. Os Sereias surgem naturalmente dela. Nasceram contaminados. Crescem contaminados. Entrelaçados em diferentes linguagens. Apetece definir como avant-garde, mas essas definições, que na maior parte das vezes já são limitadas e arbitrárias, passam a irrelevantes na estória e cenário gerado pelos Sereias.

Um cenário e estória que vive na recusa de explicações supérfluas. Realismo emocional que nos aproxima do que perturba. E ambiguidade. Um sussurro entre a lucidez e um qualquer espectro. É isso que os torna singulares, onde a música é só o início do diálogo.

E é aí, nesse lugar onde realidade e texturas se misturam, que os Sereias, incisivos e intensos, continuam a abalar e atingir ferozmente, sempre em diagonais.

Entre leituras, percepções e desconstruções -subjetivas e certamente imprecisas- entre buracos da fechadura, corredores e linguagens, entre todas as interpretações possíveis, cravo estas linhas aproveitando o curioso enquadramento deste gig a que assisti, para deixar o registo irreversível que os Sereias são uma banda do caralho, deixam vestígios, e um rastro que ficará marcado no tempo.


*foto de capa: Sereias © irreversível