Por estes dias de Lisboa Soa as performances, instalações, workshops e música segredaram-nos ao ouvido o sentido da audição por excelência.
Lisboa soou, particularmente, por estes dias aos seus receptores que diariamente a ouvem. Escutámos a cidade com Lisboa Soa, a cargo de Raquel Castro e a sua equipa, e cada vez soa mais alto e mais intenso. É a menina e moça que acorda cedo e abraça o Tejo com longos braços e as gaivotas fazem-lhe vénias ao vê-la reflectida no espelho solar.
Ainda antes das multidões preencherem as calçadas, ouvem-se os seus cabelos de folhas verdes espalhadas pelas avenidas a gargalharem ao vento que lhes toca.
Os comboios cumprimentam-se em linhas opostas e ouvimos-lhes as saudações sobre os carris. A calçada é a pele reagente, soando a identidade dos seus transeuntes. Os cacilheiros fumadores atravessam o Tejo para que Lisboa abrace Almada e vice-versa. Ouve-se a multiculturidade nos recantos da menina e moça que se assume de toda a gente.
Lisboa tão genuína, tem a identidade marcada nos sons que a despertam todos os dias e já nos entram ouvido adentro como a cantiga da nossa cidade.
O som é assim uma das assinaturas das cidades, e Lisboa cresce e intensifica-se visual e sonoramente dia para dia, criando a memória presente e futura de uma cidade escutante e dizente.
Por estes dias de Lisboa Soa as performances, instalações, workshops e música segredaram-nos ao ouvido o sentido da audição por excelência.



Ainda no ventre, é o primeiro sentido a manifestar-se e a colocar-nos em contacto com o mundo exterior. No término da nossa existência, é o último sentido que apaga a luz, justamente.
É lá, no ouvido interno, que escutamos o último sopro de vida, como que avisando que a pressa que o fez chegar, é agora a longa despedida do mundo que vê subir mais um som para o eterno.
Apesar de ser o primeiro e o último, não é de sentido único. Giza acessos, bifurcações, pontes, troços e desvios.
Há sons que fazem o seu trajecto autónomo e perdem-se no mesmo, outros sabem indubitavelmente o seu regresso a casa, os que nos são familiares.
Durante toda a nossa vida não tiramos os ouvidos do nosso pensamento. É lá que o silêncio não cala, mas descansa na quietude da consciência, desviando as atenções externas para que dê lugar ao espanto e ao conhecimento interno. Nessa quietude consciente, os sons existem de forma mais orientada e selectiva. Tantas vezes os sons são mascarados de símbolos que precisamos de dar escuta e que dificilmente conseguimos almejar numa guerrilha sonora externa.
Somos ouvintes inatos do nosso meio, no entanto, cabe a cada um de nós, ajustar o volume da parte do mundo que mais nos desperta interesse em conhecer.
Talvez por ser o primeiro sentido a nascer, ainda no ventre, padece de fome voraz. Ao nos estrearmos no mundo exterior trazemos a sofreguidão de semanas a fio em águas placentinas.
Tudo é som, tudo é frequência e o nosso corpo, receptor. Enchemos ouvidos de sons, abrimos a nossa porta para os deixar entrar. À medida que o tempo passa, vamos fazendo a triagem na entrada da nossa casa. Há sons que precisam de chave para entrar, a outros são-lhes confiados a mesma, outros cansam os dedos de tocar à campainha, sem sucesso.
Há sons que nos chegam anónimos e resta ao ouvinte dispor de tempo, disponibilidade e vontade para puxar uma cadeira e sentar-se demoradamente de ouvidos bem abertos. Neste momento, estamos na verdade a dar permissão ao som para que se apresente, para que entre na nossa biblioteca sonora e vasculhe. Quando assim o é, estamos a dar-lhe um nome, uma identidade e um espaço em nós.
Lisboa Soa provocou-nos a estranheza de sons para virem a entranharem-se. Provocou-nos ruídos aos quais oferecemos a tal cadeira para que inaugurassem um lugar em nós.

Conteúdo escrito pela criadora de conteúdos Raquel Folião