Dançar à chuva seria provavelmente a última coisa que esperávamos fazer nessa noite.
Sendo a vida feita de pequenas escolhas, na passada sexta-feira, 07 de Julho, escolhemos ir pela A3 desde Serzedo (VNG) até à “Rua S. Salvador de Quiraz, Barcelos, Portugal” porque pela A28 íamos chegar 18 minutos mais tarde. Pouco antes de entrarmos na ponte do Freixo, a hora de chegada prevista parecia um objectivo realista. Uns metros mais à frente, completamente parados na saída para o Mercado Abastecedor, passou-nos pela cabeça que chegar ao Souto Rock às 20:32h seria algo impensável… estava na hora de escolher a playlist para a viagem e optou-se pela selecção feita num dos directos do fim-de-semana anterior. “I Just Wanna Get Along”, nome retirado de um dos temas do alinhamento do “Last Splash” das Breeders. Os primeiros minutos do percurso serviram para acabar com os restos diurnos das vidas corporativas e depois da primeira estação de serviço já a conversa girava em torno de discos e festivais recentes. Talvez sugestionados pelo título daquela selecção de músicas optámos por nos deixarmos ir pelo embalo dos quilómetros e da toada cada vez mais crescente da distorção que saia do sistema de som do automóvel. A pontualidade britânica dos sistemas de GPS é um fenómeno inexplicável, e às 20:32h estávamos a ser recebidos pelo sorriso rasgado do Leonel que nos indicou prontamente onde poderíamos estacionar. A outra metade dos Irreversíveis tinha acabado de chegar e postos ambos os pés no backstage do Souto Rock, foi-nos oferecido o primeiro de muitos ensinamentos de hospitalidade.
Os copos do Basqueiral que levámos para beber umas cervejas encheram-se sem um pingo de cerimónia e antes do primordial gole descer garganta abaixo, aconteceu um dos pontos altos das hostilidades – o jantar. Três mesas corridas plantadas num relvado imaculado prontas a receber uma trupe de estômago faminto e alma esfomeada. Perante a pergunta “é para comer, ou é vegetariano?”, decidi comer. E comi uma massa à lavrador cozinhada com amor e sabedoria, acompanhada por um verde branco capaz de fazer corar enólogos pretensiosos, tudo isto regado por não sei quantas conversas paralelas e perpendiculares que tornaram aquele final de tarde num momento incrível. Seguiu-se o café da praxe e um encontro imediato de quinquagésimo grau com um bagaço que não sou capaz de adjectivar…
Este é já o segundo evento da temporada onde sou confrontado com um artista português que desconhecia e levo uma pedrada na mona que me deixa virado do avesso.
O palco do Souto Rock tem duas oliveiras organicamente encaixadas lá dentro e manda um charme que dEUS me livre… é de um gajo ficar louco de amores. Estávamos a contemplá-lo ao longe, perdidos no paleio com os dois fotógrafos mais fofos de sempre quando o concerto dos The Mirandas abriu a noite de sexta-feira do festival. Ainda a procissão ia no adro e já tinha percebido estar perante quatro puros sangue criados de acordo com os preceitos da cultura clássica do rock n´roll. Cantigas sedutoras, sóbrias, bem esgalhadas, agressivas a espaços e também a espaços endurecidas por palavras bem enraizadas nesse imaginário sonoro por onde deslizam com a maior das simplicidades. A cena estava a acontecer ali, mas poderia estar a acontecer num estádio ou num festival com uma multidão a perder de vista. Cinquenta minutos de showbiz descontraído, bem-disposto e altamente apelativo. Deixaram-me cheio de UAU!
Fomos ao café para buscar uma cerveja – sim, esta festa tem um café no recinto – e alguém se lembrou de pedir uma rodada de shots de tequila. O limão ainda não tinha acabado de cortar o momento quando o palco começou outra vez a debitar som. Saímos em modo contra corrente e mal chegámos lá fora percebemos a razão desse sentido inverso. Estava a chover… a primeira música de Tyroliro transformou um potencial downer num no brainer e à segunda estávamos plantados na frente do palco a levar um banho… de sonoro. Dançar à chuva seria provavelmente a última coisa que esperávamos fazer nessa noite. Agarrámos a oportunidade facilitada pela iconografia do momento e decidimos ensopar a alma num desvario sonoro cosmopolita destrocado por dois indivíduos singulares, tão senhores do seu nariz como de uma musicalidade com tanto de vibrante como de provocadora. Não mandaram a chuva embora, como era a sua pretensão, mas deram-lhe forte e feio no focinho. Este é já o segundo evento da temporada onde sou confrontado com um artista português que desconhecia e levo uma pedrada na mona que me deixa virado do avesso. Na ressaca do fim-de-semana, a discografia de Tyroliro acompanhou-me em repeat enquanto fui sendo oprimido pela repetição tarefeira de folhas de cálculo a perder de vista. Constatei manter o músculo da memória auditiva quando percebi lembrar-me literalmente de todas as músicas tocadas, chegando ao ponto de, a espaços, conseguir cantarolar as narrativas de um cancioneiro degenerado bem capaz de integrar o programa da academia numa disciplina de Literaturas Orais e Marginais. Não posso deixar de somar mais uma figura ao portefólio de cenas musicais portuguesas que me estão a obrigar a tirar a cabeça do esfíncter cada vez mais opressor das minhas predilecções anglo-saxónicas.
A chuva insistia em não arredar pé, não sendo difícil entender essa sua teimosia. Depois de um concerto em modo “o maior fogueteiro do Vale de Ílhavo” tinha de haver alguém para apanhar as canas, papel que assentou na perfeição aos Fugly. Até porque depois de as terem na mão tiveram a audácia de as voltar a fazer rebentar. E foi nesta altura que o público do Souto Rock se descamisou e entrou num desvario total. Para a posteridade fica uma multidão envolvida num manto de plástico que a determinada altura se transformou numa redoma de descompressão e destilaria. Um lembrete de que os excessos são parte integrante da vida, dão-lhe amplitude, sentido, mojo… “You’re a mess and that’s alright”. Os Fugly foram a personificação da entrega. Não foram invejosos. Deixaram tudo entre aquelas duas oliveiras… e nós recolhemos, aumentámos o volume da bagagem e levámos para casa.
A nossa primeira noite do Souto Rock terminou com um vodca Redbull e um desvio até à baixa do Porto antes do recolher obrigatório, forçado por mais de quatro décadas de uma corporalidade que insiste em relembrar à alma o seu lugar. Fechou-se um ciclo nessa madrugada, mas isso é outro fascículo de outra enciclopédia… de esqueleto no colchão respirou-se fundo para logo a seguir se dormir à pressa, tamanha era a vontade de voltar a inserir no GPS a morada “Rua S. Salvador de Quiraz, Barcelos, Portugal”.
*fotos de capa – Souto Rock 2023 © Pulsar
Conteúdo escrito pelo criador de conteúdos Gonçalo Morgado
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