Se a cultura é de todos e para todos, porque é que só alguns a recebem em paletes de euros?

Chegamos à primavera/verão e, em conjunto com estas estações, surgem também os cartazes reluzentes que prometem tudo. É a época alta dos festivais e festas populares, onde o dinheiro circula à velocidade de um palco giratório e onde o discurso do “apoio à cultura” se torna mais barulhento que os próprios concertos.

Câmaras municipais abrem cofres, organismos públicos carimbam apoios, empresas estatais fazem fila para associar o nome à “dinamização do território”. Tudo em nome da cultura. Ou melhor, de uma certa ideia de cultura. Aquela que já vem pré-embalada, com riders imensos, cachês inflacionados e a “certeza” de que vai “encher”.
Comissões, produtores, autarquias e agências, continuam a escolher nomes por catálogo, com cachês combinados à porta fechada, sem transparência, sem critério artístico, sem qualquer visão a longo prazo nem qualquer apoio aqueles que tanto fazem, tantas vezes.

… Cachês inflacionados e riders que dariam para pagar um ano inteiro de cultura real, local e viva.

Enquanto isso, centenas de projetos independentes atravessam o país, e o estrangeiro, em carrinhas com mais quilometragem que orçamento, montam o próprio palco, afinam o som sozinhos e tocam para quem resiste a ficar em casa, tudo isto quase sempre por um valor simbólico ou com o que sobrar da bilheteira. Há quem grave discos em casa, edite no formato que for possível e faça tours autogeridas, porque acredita. Não porque tem um contrato.

Mas, no discurso público, continuam a falar de apoio à criação.
Continua-se a vender diversidade e inovação, enquanto se repete o mesmo cartaz com três arranjos diferentes.
Continua-se a encher a boca com “acesso à cultura”, enquanto se deixam salas independentes à míngua e artistas emergentes no esquecimento.

O problema não está em trazer nomes grandes, está em esquecer todos os outros.
O problema não está em investir, está em quem se investe sempre.
O problema não está nas luzes, está na sombra em que se deixa o resto.

O problema está quando se gastam milhares de euros em três noites de festa, ou na semana de qualquer coisa xpto, e existem estruturas culturais que fecham por não conseguirem pagar a renda ou a conta da luz. É preciso não esquecer que muitos que acabam por chegar aos grandes palcos passaram primeiro por todo o processo. E quantos não perdemos durante o processo antes de chegarem a uma rentabilização?

A cultura não se resume ao que enche praças, ruas e parques da cidade com fogo de artifício.
A cultura acontece todos os dias, de forma frágil, invisível, teimosa.
A cultura nasce e vive nas margens, mas não sobrevive sem meios.

E enquanto houver mais dinheiro para o palco principal de uma festa/festival do que para todo um ecossistema de criação local, não nos venham falar em apoio à cultura.

Nós cá continuamos.
A apoiar o que é feito com verdade, com urgência e com muito pouco.
A dar palco a quem não vive da máquina, mas faz da criação o seu ofício.
A amplificar, no que podemos, o que está fora do circuito dourado, mas dentro do que realmente importa.

Há quem prefira ficar no camarote. Nós preferimos estar no chão, onde tudo acontece.
Não é fácil, não é lucrativo, mas é bastante real.
E se a cultura é de todos, então que todos se juntem a defendê-la. Porque um país sem cultura é um espaço vazio.

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