Se o leitor estiver à espera de encontrar neste texto algo de muito específico sobre os concertos do 1º dia do Festival Paredes de Coura 2024, vai ficar desiludido.
Esta crónica tem outro objetivo.
Chegar a Paredes de Coura, tantos anos depois, foi como abrir uma velha caixa de memórias. As edições passadas, com as suas histórias, começaram a ressoar e ecoar pela minha mente. Já havia bem mais de uma década, com uma ou outra passagem fugaz pelo meio, que não pisava aquele chão. Mas o reencontro estava feito, e eu, rodeado de conversas e inesperados encontros, vivia intensa e profundamente o presente, sem pressas, mas em semicrise de ansiedade.
Enquanto os primeiros acordes de Glass Beams rompiam pelo Festival, a expectativa crescia dentro de mim. Gostava de poder ter assistido ao concerto com mais atenção, mas a verdade é que as conversas e as recordações tomavam conta do meu tempo. As questões sobre Glass Beams ficaram por responder na totalidade, mas estava a curtir o que ia ouvindo, qual banda sonora do meu filme.
A cada movimentação, a cada reencontro, as tais conversas, impediam-me, positivamente e por escolha própria, de assistir de forma concentrada aos concertos… Ainda assim, consegui vivenciar em pleno um par:
Apanhei os 800 Gondomar já mais calmo no que toca às emoções do dia, tinha assistido ao renovado projecto, com disco editado este ano (entrevista Irreversível), no Mavy, Basqueiral e Souto Rock. Os 800 Gondomar são uma força que transborda o palco. Desta vez, talvez por estar com o coração aberto ao que fosse possível, senti-me especialmente próximo da banda. Referir, sem merdas, já tive esta conversa com eles, bem antes desta actuação, por isso posso escrever isto publicamente, que o projecto deu um grande salto qualitativo nas suas apresentações ao vivo.
“Dogsbody” de Model/Actriz foi o meu disco internacional do ano 2023. Escrever que tinha muita curiosidade para assistir ao gig é estar a ser contido e comedido. A performance, hipnótica e um som que tanto explora o caos quanto a estrutura, fez-me perder a noção do espaço-tempo, e é tão bom quando isso acontece. Ao mesmo tempo que pensava que preferia assistir a este gig numa sala fechada, sentia que ali, em Coura, estava a ser perfeito. Dicotomias de um melómano.
Foi um dos meus grandes momentos do ano no que toca a concertos em ambiente de festival. Confirmaram todas as expectativas. Saí dali com uma admiração ainda mais profunda pela banda.
Tive muita pena de não ter aguentado para Sextile… ainda ouvi ao longe enquanto, não sem alguma dificuldade, subia em direcção à saída do festival e para a Vila. A exaustão de um dia carregado de emoções e memórias começava a pesar. Pesava mesmo.
Mas, o mote desta crónica; foi o feeling que tive no dia, cheguei a comentar exatamente isso, nessa noite de reencontros, a um amigo que não via há muitos anos; estava decidido: “O meu regresso a Paredes de Coura“.
“Ou a mulher com quem casei para de decidir anualmente escolher a data do seu aniversário em datas coincidentes com o Festival Paredes de Coura, ou passa anualmente a dar um salto comigo ao Festival.”
Foram tantas as vezes que fui ao Festival Paredes de Coura desde o meio dos anos 90… Tinha de as contar e pesquisar cada edição…
Em certa ocasião, estava sentado com um par de amigos à porta de um bar na Trofa e arrancamos para Paredes de Coura, sem saber (pelo menos eu) ao que íamos, e acabamos a apanhar Zen, Mão Morta e o seminal e inesquecível concerto de Rollins Band.
Na edição de 1999, à chegada, não passei da 1ª banca de cerveja durante 3 dias e 2 noites do Festival. A história conta-se rapidamente… ao passar na tal banca de cerveja ouvi chamarem por mim. Quem me acompanhava foi montar as tendas e etc. Eu fiquei ali. E ali acabei por ficar de forma quase permanente. Assisti apenas a 2 concertos, Suede e Mogwai. Não cheguei a ir nenhuma vez nem às tendas, nem ao rio, nem aos chuveiros, nem à Vila… passei o Festival ali, em encontros, festividades e desvarios. Também dá para contar esta história de forma extensa e recheada de pormenores. Dava uma crónica per se.
Noutra ocasião, fui, fomos, sem bilhete, sem dinheiro para o bilhete, íamos “só” para estar no ambiente de Paredes de Coura. Acabamos a entrar patrocinados por amigos de longa data, com direito a estadia em tendas tipo T3 duplex.
São mais de uma dezena de idas e de histórias sem fim… Que terminaram quando iniciei um relacionamento apaixonado com a Mulher que acabou por ser a minha parceira, amante, amiga e companheira, até hoje. O seu aniversário e o nosso aniversário de namoro batem, invariavelmente, com as datas do Festival Paredes de Coura.
Voltar a Paredes de Coura trouxe-me uma grande surpresa. O festival onde vivi tantos momentos tornou-se outra coisa, e aquele “meu” Paredes de Coura, com a sua charmosa e cativante simplicidade, já não existe. Mas, deixem-me dizer desde já que esta não é uma crítica saudosista ou uma crise precoce de meia-idade. Apesar das evidentes mudanças, Paredes de Coura mantém e respira um espírito indie, comunitário, de “boa onda”, que não se encontra em mais nenhum evento deste tipo nesta dimensão. Cada vez mais me sinto deslocado nos grandes festivais de música – uns tentam, artificialmente, reproduzir “a vibe”, mas não conseguem. Com três décadas de história (interrompida pelo COVID, é certo), o festival cimentou um espírito próprio que o dinheiro, por mais que o despejes, não compra.
A verdade é que o actual Paredes de Coura, desde a Vila até ao amigo que não via há 10 anos, passando pelos bons concertos – um cartaz diário incrível nesta edição de 2024, uma pena não ser oportuno para mim acompanhar todos os dias – continua especial e único. Era este o sentimento enquanto caminhava para o carro e para a viagem de regresso a casa.
Já na estrada, a crónica começava a desenhar-se na minha cabeça. E, entre reflexões, considerações, observações, raciocínios e juízos, surgiram umas lágrimas, daquelas que descem discretamente e se limpam com um dedo. Foi então que me surge o sentimento cliché: “Foda-se, ainda temos o Festival Paredes de Coura!”
“Foda-se, ainda temos o Festival Paredes de Coura!” a que se somou a ideia para o fecho deste texto:
Ou a mulher com quem casei para de decidir anualmente escolher a data do seu aniversário em datas coincidentes com o Festival Paredes de Coura, ou passa anualmente a dar um salto comigo ao Festival. É que, somando e subtraindo tudo, ir a Paredes de Coura para uma ou mais noites de concertos, é ainda uma experiência que vale a pena ser vivida, repetidamente.
Foto de capa:
VODAFONE PAREDES DE COURA 2024 © Hugo Lima
Texto:
Francisco Barros