Para mim, sempre houve um vínculo afetivo entre os lugares e as músicas. Não consigo dissociá-lo, e, quando viajo, as memórias mais duradouras e intensas são aquelas em que a música esteve presente. A música está ad aeternum na minha mente.
Ao início da tarde, a azáfama era muita junto ao Martim Moniz, praça ruidosa e algo desordenada, onde apanhei o Elétrico 28 que me levaria até Campo de Ourique. Está previsto para 2026 o arranque de um enorme projeto de requalificação para a histórica praça lisboeta com nobre vista para o Castelo de São Jorge.
Fiquei junto à janela, num dos lugares da frente. A meu lado, sentou-se um homem com sotaque americano. Enquanto subíamos para o Bairro da Graça, o indivíduo fez saber que era do Tennessee, na região sudeste dos Estados Unidos. Chamava-se Brian e vivia em Nashville. Percebendo a minha preocupação em escolher uma música para a viagem, imediatamente me sugeriu Rich Ruth, um seu conterrâneo. Disse-me que o músico tinha acabado de lançar o seu último trabalho e desejou-me um bom passeio pelas colinas de Lisboa, enquanto preparava a máquina fotográfica. Naturalmente, aceitei de bom grado a recomendação do simpático cavalheiro e pude, em diante, prestar a devida atenção ao percurso do Elétrico 28.
A minha primeira saída foi junto ao Largo da Graça. Brian seguiu viagem, mas eu continuei escutando a sua preciosa dica, o fresquíssimo álbum “Water Still Flows“. A faixa de abertura, “Action at a Distance“, entra no universo do rock progressivo, deixando-me bastante curioso relativamente às outras músicas. “God Wont Speak“, por exemplo, já oferece um registo marcadamente ambiental.
A Graça é um bairro tradicional, cheio de cafés, frutarias, barbeiros, tascas antigas, mas também palacetes, jardins e um miradouro lindíssimo que homenageia Sophia de Mello Breyner, conhecido por Miradouro da Graça.
De novo no 28. Desta vez, não consegui lugar à janela. Em pouco tempo estávamos nas ruas estreitas e inclinadas de Alfama. Este típico bairro lisboeta está muito apegado ao fado, e naturalmente, são inúmeras as casas alusivas a este género musical. Àquela hora andava muita gente a passear; na verdade, Lisboa é uma cidade muito popular. Passámos junto ao largo das Portas do Sol que tem um ótima vista sobre o Tejo. Mesmo com os auscultadores, ouvia-se a campainha do Elétrico e as buzinas dos tuk-tuks. Descemos até ao histórico e fabuloso edifício da Sé.
Pela Baixa Pombalina o tráfego era intenso e a cidade ganhava uma vibração fora do comum. Admirava a subtileza com que o Elétrico fazia o seu percurso. Os turistas falavam alto e Lisboa ficara ainda mais eletrizante. Subimos um pouco até à Praça Luís de Camões no Chiado.
Voltando à música de Rich Ruth, naquela altura ouvia a poderosa “Aspiring to the Sky“. Devo dizer que fui repetindo vezes sem conta a audição de alguns temas.
A minha segunda saída do 28 ocorre ao pé do Bairro Alto. Passeio até à emblemática Rua da Bica de Duarte Belo, onde uns jovens vieram-me pedir para lhes tirar uma fotografia de grupo. São muitos os visitantes que pretendem eternizar o momento da sua passagem junto ao famosíssimo Elevador da Bica que liga o Cais do Sodré ao Bairro Alto. As colinas , num constante sobe e desce, oferecem um carisma excecional à cidade.
Sentia-me com força e voltei a entrar no Elétrico apenas junto à Calçada da Estrela. Justamente nessa ocasião, já escutava “Somewhere in Time“, a última canção do álbum e por sinal, a minha favorita. Water Still Flows é um trabalho com elementos de rock progressivo e de algum psicadelismo, mas também de ambient e de jazz.
Fui sempre me regozijando com a arquitetura singular de uma cidade lindíssima.
Mesmo antes de chegar ao fim do percurso, a Assembleia da República, e no final de uma íngreme subida que nos leva ao topo da colina, a icónica Basílica da Estrela. A viagem terminava no acolhedor e charmoso bairro de Campo de Ourique.
Estou consciente de que voltarei em breve ao Elétrico 28.
Foto de capa: Miradouro de Santa Luzia © Miguel Pinho
Décima sétima edição d´ “As sonoridades das viagens“ na Irreversível.
Miguel Pinho é um reconhecido apaixonado por música e autor publicado sobre viagens.
Conhecendo estas premissas, a Irreversível lançou-lhe o desafio de somar as duas, a música e as suas viagens, numa rubrica para Magazine.
Mais recente livro de Miguel Pinho (artigo Irreversível):
“Das Pontes do Porto aos Doces Vinhedos Magiares“.