Para mim, sempre houve um vínculo afetivo entre os lugares e as músicas. Não consigo dissociá-lo, e, quando viajo, as memórias mais duradouras e intensas são aquelas em que a música esteve presente. A música está ad aeternum na minha mente.
Desde há muito tempo que lia coisas elogiosas sobre a paisagem e a cultura de Puglia. De quando em vez, sonhava com essa região de cidades cativantes e praias charmosas. Perante tal anseio, decidi então viajar até ao calcanhar desse extraordinário país em forma de bota…a Itália.
Foi um encontro feliz. O “salto da bota” é um lugar incrível para os apreciadores de história e cultura. Localizada entre o Mar Jónico e o Mar Adriático, as praias são deslumbrantes e as aldeias e cidades, encantadoras. Fiquei estupefacto com a gastronomia e a genuinidade, despretensiosismo e alegria de viver do povo pugliese. É uma terra entusiasmante.
Literalmente idílico o meu primeiro dia no Salento, a parte mais meridional de Puglia. Lecce, a capital salentina, é uma verdadeira obra-prima barroca, onde a cada esquina somos surpreendidos com maravilhas arquitetónicas. As ruas mostram-se repletas de lindas boutiques e trattorias e também de casas com enormes portais, palácios faustosos e tantas, mas tantas igrejas feitas do calcário local cuja cor se apresenta num amarelo-pálido que nitidamente conferem à cidade um caráter poético.
À noite, Lecce torna-se ainda mais esplendorosa com os magníficos edifícios barrocos iluminados. Encontrava-me na Via Libertini – bem próximo da histórica Piazza Duomo – e à minha frente, a Igreja de Santa Ana… mais tarde vim a saber que foi construída no século XVII por vontade de uma senhora da nobreza, Teresa Paladini. Muitas das igrejas estão abertas até bem tarde, permitindo assim a visita dos locais e, naturalmente, dos turistas, já que o calor durante o dia é quase sufocante.
Lecce | Piazza Duomo © Miguel Pinho
Milagrosamente, pareceu-me escutar a música de Giovanni Paisiello vinda do interior da igreja. Entrei, não hesitando por nenhum instante. A melodia irrompia do Coro Alto muito acima da porta principal do edifício. A Música parece não ter outra finalidade além de nos trazer alegria. O primeiro efeito foi tranquilizante. Arranjei uma posição cómoda e deixei-me levar… isolei-me do mundo exterior e concentrei-me apenas naquele momento. A soprano tinha uma voz absolutamente cristalina e os violinistas e os organistas eram fascinantes. O concerto prendia-se com uma homenagem a Giuseppe Pastore e à música que foi sempre objeto de sua pesquisa, o barroco de compositores salentinos.
No final, reparo nos rostos atónitos e de absoluta surpresa dos presentes. Foi uma autêntica celebração musical. Eu não esperava outra coisa de Lecce…
*Foto de capa: Lecce | Piazza Duomo © Miguel Pinho
Décima oitava edição d´ “As sonoridades das viagens“ na Irreversível.
Miguel Pinho é um reconhecido apaixonado por música e autor publicado sobre viagens.
Conhecendo estas premissas, a Irreversível lançou-lhe o desafio de somar as duas, a música e as suas viagens, numa rubrica para Magazine.
Mais recente livro de Miguel Pinho (artigo Irreversível):
“Das Pontes do Porto aos Doces Vinhedos Magiares“.